Thursday, October 26, 2006

A Meia-Maratona de Nampula (Curta-metragem) - 12.10.2006

Um dos maiores e mais caricatos vícios dos países pobres é imitarem os países ricos. A enternecedora e ridícula mania das grandezas.

Em Moçambique, 12 de Outubro é o dia do professor. Num país em que tantos docentes são corruptos, coagem moral e sexualmente as alunas, nada mais adequado do que um dia para os louvar. Faço mal em tomar o todo pela parte, porquanto, como é evidante, também há professores justos, amigos dos alunos, que lutam por um moçambique instruído, contudo, mesmo assim, teria preferido o dia contra a promiscuidade no ensino.

Saímos cedo de casa e, antes de irmos para faculdade, parámos numa estação de serviço para abastecer. Ainda tomado por esse lento processo do despertar, aguardo ao volante pelo empregado da bomba. Contudo, em breve seria chamado à espertina máxima, para apreciar um dos momentos mais hilariantes da curta passagem por este peculiar lugar.

Numa das artérias principais da cidade, circula vagarosamente uma mota, ocupada por um airoso agente da polícia, impecavelmente fardado e impassivelmente concentrado no seu cimeiro dever. A sirene e a luz intermitente propalam a presença da autoridade, obrigando automóveis e transeuntes a afastarem-se, a pararem, sobretudo, a não incomodarem.

Penso «Deve vir aí o governador ou algum ministro». A mota abre este leito límpido e desértico porquanto, 50m. antes, dois corredores suados e dotados de uma acentuada escoliose, palmilham paulatinamente a cidade, realizando um percurso predefinido, participando numa prova de atletismo organizada para saudar o muito indispensável dia do professor.

Pensei «Aí estão os líderes da corrida». Passados 10 segundos, surgem mais dois intrépidos maratonistas derreados pelo cansaço, exaurindo, neste momento fundamental das suas carreiras, as suas valiosas reservas energéticas.

Pensei «Aí estão mais dois que se destacaram do grupo». Em África, a presciência do europeu é, muito frequentemente, um passo em falso. Com efeito, 50 m. atrás deste dois perseguidores, segue uma mota, ocupada por um prestimoso agente da polícia, solenemente fardado e imperturbavelmente concentrado no seu altaneiro dever. A sirene e a luz intermitente propalam a presença da autoridade, fazendo notar aos automóveis e transeuntes que a festa acabou, “Podem voltar a circular normalmente”.

Colocou-se a seguinte questão: há quatro tipos que pretendem correr na maratona do dia do professor. Vamos parar o trânsito de uma cidade inteira por causa deste evento e, além disso, vamos afectar à organização as únicas duas motas da polícia existentes nesta província? Vamos a isso.

Neste continente de extremos, é preciso joeirar muito para encontrar um grão de razoabilidade. E eu, já não tão recém-chegado, só peço aos meus quadros mentais que não se deturpem e me permitam continuar a gozar estes momentos.

Reginaldo - 08.10.2006

Por trás da moderadamente bem-parecida Academia Militar, no frontispício da qual brilha um entumecido retrato de Samora Machel, estende-se um vasto bairro de adobe e capim, por vezes zinco, ao sabor das posses.

Outra lição concedida pela observação da pobreza é esta do fosso fundo entre o desprovido do campo e o miserável da cidade. Para os habitantes rústicos, vem uma malária e logo se vê São Pisco preparado para levar dois ou três. Mas há onde cultivar, é, por vezes, possível domesticar as agruras mais selvagens da fome, há, a bem dos sentidos e do espírito, um tranquilizante bucolismo, um suave verdejar, o famigerado pôr de Sol mais belo do mundo. Na cidade, o cimento erecto e o alcatrão estendido não são tão generosos como a milagrosa natureza. Os bairros pobres estão putrefactos e são, em regra, o confortável lar de ratos, de parasitas, de doenças, enfim, das pestes do físico e da moral.

A carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. Depois de ter assistido a mais uma missa “étnica”, o Arlindo perguntou-me “Queres ir ali a casa de uma viúva que estou a apoiar? Tem um filho doente, problemas na casa, etc., e pediu-me ajuda. Vou lá ver se é possível fazer alguma coisa. Queres vir?”. E, feito o prelúdio, a carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. “Bom, é aqui”.

A casa - usando o pincel eufemista – é feita de envelhecidos tijolos de areia encarnada. As folhas de zinco dispostas triangularmente fazem as vezes de um telhado esfarrapado, obstipando com dificuldade a chuva, convidando as farpas sufocantes do calor. As paredes não encerram uma área superior a 25 m2, dividida desigualmente por uma única vez. No interior, o chão cimentado mas irregular é o auge do luxo, ao passo que a estrutura vertical se esboroa e se enche de porosidade, permitindo a invasão imperial de térmites e outros asquerosos comparsas da penúria. O curto terreno onde este lar foi erigido ainda deixou espaço para um ínfimo quintal. Aqui, um desengonçado alpendre cobre a quase inexistente cozinha, acusada apenas por um pote curvilíneo de barro enegrecido, no qual uns parcos grãos de arroz se dilatam, desafiando a frugalidade do alimento. Ao lado, foi erguida uma estrutura paralelipipédica formada por quatro tabiques de capim, tendo sido recortada uma porta irregular num deles. É a latrina. Logo à entrada, o mistério da vida manifesta-se uma vez mais: num charco negro e nauseabundo, uma colónia fétida e repulsiva de insectos alimenta-se do desperdício humano.

Dentro da cozinha, um imberbe, detentor de um passado pouco superior a um ano, acaricia com as gengivas a metade ressequida e retardada de um pão de água, olha-nos transido, estranhando os intrusos. No chão do quintal, três crianças recriam-se com berlindes. O maior, o Abafador, afasta os mais pequenos, não lhes permitindo chegar à cova feita objectivo, nesta expressiva e fiel reprodução da vida.

Deitado numa pequena elevação de cimento que bordeja toda a estrutura da casa, exteriorizando dor e lamento, absorto num frenético resfolegar, cobrindo a sua inocente nudez com uns calções trinchados e fustigados pelo uso, está Reginaldo, o enfermo. No flanco esquerdo do pescoço, um inchaço esférico, da dimensão de uma tangerina em Janeiro, é a causa do padecimento.
Vive com a mãe, três irmãs, três irmãos, dois sobrinhos, dez pessoas, cada um com o seu feitio, se sonhassem, cada um teria os seus, cada um deles postergado à sua insignificante singularidade, mas todos, sem excepção, pobres onde a ideia de pobreza não chega. A casa, hoje precisada de manutenção, foi comprada e oferecida pelo Arlindo, que lhes dá uma mensalidade de 800Mt. (€ 24) para sobreviverem, ou, mais correctamente, para cravarem as unhas encardidas na montanha escorregadia que é esta existência. E não se estranhe a pequenez da doação, em verdade, os recursos têm este grave defeito da escassez, e não é só o mal que se distribui pelas aldeias, havendo justiça, também o bem merece tal sorte. E se o país é rico em alguma coisa é em histórias de pobreza degradante.

Reginaldo estava naquele estado havia duas semanas. Os comprimidos receitados por algum ignaro herdeiro de Hipócrates tinham permitido a proliferação da infecção. As dores tomavam fôlego e cresciam desabridamente, provocando-lhe prostração e languidez. Além do padecimento, havia uma ralação a atormentar Reginaldo. No dia seguinte, faria exames determinantes para passar de classe, e aquele mal-estar era mais uma voraz ameaça para um sucesso escolar já amplamente seviciado pela miséria. Nesta criança de 9 anos, um físico débil e uma saúde incerta coabitam com uma mente conscienciosa bafejada por um inusitado sentido de dever.

Logo ali se trocaram projectos e propostas, pedidos e ordens, súplicas e lembranças, até que o Arlindo consentiu e decidiu que levaríamos Reginaldo ao sinistro e tenebroso Hospital Central de Nampula.

Este estabelecimento de saúde, certamente o melhor da região norte, situa-se numa zona nuclear da cidade. Quando nos aproximamos, percebemos que o edifício se projecta por uma razoavelmente extensa ladeira, dando assim a ideia de uma construção em crescendo. A fachada, dotada de um perfumado aroma colonialista, impressiona positivamente o observador. Segundo me explicou o Arlindo, a arquitectura interior é um exemplo soberano de excelência da construção hospitalar. Foi dado o primado à optimização funcional do edifício, obtendo-se deste modo uma intrincada mas prática rede de rampas, corredores, salas e divisões, tudo ao serviço dessa tão nobre missão que consiste no sublime gesto de curar e dar vida.

O largo da entrada, ainda na zona baixa, é servido por um gigante semicírculo de alcatrão cujo centro é a entrada para as urgências. Assim, os veículos que transportam doentes entram pela abertura esquerda do círculo, param a meio e largam os passageiros, completando posteriormente este circuito curvilíneo até à saída, do lado direito. Enfim, um esplendor modernista do pragmatismo arquitectónico.

Quer por vezes o futuro mostrar-se quando ainda gastamos o tempo presente. A isso se chama presságio, e foi assim que entendi as fétidas lixeiras fabricadas na orla dos muros hospitalares, das quais exalava o agressivo odor da morte, da putrescência, possivelmente expelido por alguns animais sem vida.

Entrámos no Hospital com Reginaldo. Um largo corredor, dividido em dois, triagem agora, salas de tratamento depois, acolhia os pacientes, ficando uma vez mais patente a imagem de uma máquina bem pensada. Na primeira divisão, do lado esquerdo postavam-se três diminutos compartimentos, privados dos olhares mais curiosos por cortinas celestes de pano esgaçado. Supostamente, era ali o lugar da triagem e do encaminhamento. Em oposição estavam quatro filas de cadeiras, nas quais alguns rostos sofridos aguardavam a chamada.

Pagámos a taxa moderadora, 1 metical, três dos nossos cêntimos. Contudo, este parco peditório é como a borrasca que antecede as bátegas. Olhando bem, vejo, logo à entrada, dois homens vestidos de branco, numa agradável conversa, intercalada por leves sorrisos instantaneamente convolados em fartas gargalhadas, enfim, um pasmo de boa disposição e de bem-viver. Eram os enfermeiros responsáveis pela triagem, envolvidos neste alegre tagarelar, enquanto os doentes esperavam, aguardavam, petrificavam, até que o assunto terminasse. Vendem caro aquilo que devem. Entregues ao vício e ao ócio, fogem à obrigação agravando com isso a desgraça alheia, na espera de súplicas e clamores para porem termo à inacção, na qual se incrustam pedaços enormes de sujidade moral e legal. Mas estes, ao contrário de outros que se contentam com venerações e preces, exigem dinheiro a quem nada tem. Se querem a minha atenção, façam o favor de me subornarem, de me pagarem, de me darem o que têm, de outra forma, nada feito. Não se pode generalizar, porque é injusto e inexacto, mas se isto acontece uma vez que seja, já é grave.

Desta sorte, o rosto branco do Arlindo e a sua condição de Padre obviaram aos trâmites costumeiros da peita, “Ó meu irmão, anda cá. Vê aqui este meu filho, se fazes favor”.Feita a triagem em menos de um ápice, ultrapassando esperas e demoras, lá se concluiu que era necessário drenar o pus. Se em Portugal o apadrinhamento é, em regra, a condição do sucesso, a diferença entre viver bem e viver mal, aqui, pode muito belamente ser a diferença entre estar vivo ou estar morto.

Ultrapassado o primeiro obstáculo, tivemos o merecido acesso à segunda divisória do corredor, onde, segundo as normas e os regulamentos, se enceta o verdadeiro processo de cura, ou o paliativo, ou, não excepcionalmente, o degenerativo.

Do lado direito de quem entra, três senhoras e um casal aguardam vez. Do lado esquerdo, deparo com um cenário macabro. Numa maca com as pernas comidas pela ferrugem, está uma senhora a dormir o seu último sono, o da eternidade. À excepção dos pés, e é neles que leio o género do defunto, todo o seu corpo está tapado por um lençol de um falso e esbranquiçado linho, e aguarda, tal como os vivos, mas destarte para que um conhecido ou familiar venha reconhecer o vivo a quem pertenceu aquele nada.

Numa das portas cerradas pode ler-se um aviso: “Este serviço é gratuito. Combata a angariação ilícita”. É preciso acreditar que não há alguém a quem tudo se aproveite e alguém a quem tudo se despreze...

O Arlindo entra na sala de serviço com Reginaldo pela mão. Uma enfermeira, confortavelmente sentada numa cadeira, com as pernas esticadas sobre um banco, olha os invasores num espanto balofo e tosco. “Minha irmã, veja aqui este meu filho. É preciso drenar esta infecção”, “Ah… Pois, mas não temos lâminas aqui nas urgências. Se o Senhor Padre arranjar uma lâmina, talvez se possa fazer alguma coisa”. E lá partimos nós para casa, e lá regressamos nós ao hospital, cada um empunhando a sua lâmina de barbear, vociferando, aviltando, maldizendo este tristíssimo episódio, que nem a miséria das misérias justifica, só o desleixo, a incompetência, a falta de brio, a cretinice, talvez a maior e mais séria das pobrezas, que é aquela que nos assola impiedosamente o espírito, talvez só isso sirva de moldura a este expoente do surrealismo. Contudo, e por vezes o sol caloroso intromete-se no reino da tempestade mais tenebrosa, algum ideólogo audaz tinha ido ao bloco operatório alugar um bisturi, e, finalmente, tudo estava a postos.

“Anestesia? Não, isso não temos. Vamos cortar assim”. Deitado na maca sobre o braço direito, Reginaldo espera a investidura lancinante. Tudo se inicia serenamente. O Arlindo segura a mão da criança, promete-lhe bolos e refrescos quando tudo terminar, enquanto o enfermeiro destacado para a grande empresa inicia a operação. O Arlindo repete as promessas alimentícias incessantemente, pensando, e bem, que, por vezes, antecipar um prazer futuro é a única forma de estancar uma dor presente. Reginaldo cerra os dentes, lança aos meus olhos um estrépito surdo de dor, junta os lábios grossos, e dos seus olhos desprendem-se lágrimas de estoicismo inauditas.

Entretanto, distraio-me com as cavaqueiras circundantes. “Foi um familiar do campo que me pediu para vir aqui. Começou a sentir-se mal, a vomitar, febres altas, esteve assim uns dias, não arranjavam maneira de a trazer aqui, perdeu os sentidos e acabou. E agora pediram-me para vir aqui reconhecê-la”.Talvez aquela senhora fosse um ninho malárico, talvez tivesse cura, mas quanto vale a vida de um pobre?

Tudo terminaria em bem. É certo, nem Reginaldo estava a morrer nem foi colocado perante uma provação nunca antes vista. Todavia, o valor de uma história está muitas vezes no que não nos diz, nas hipóteses sugeridas, está nesta profunda magia de nos mostrar o que não é através daquilo que é. Aqui, é corrente dizer-se que estamos nas mãos de deus. Se a maleita for para deitar por terra, neste lugar, a ciência não é mágica e pode muito pouco. De facto, ou nas mãos de deus ou nas palmas trémulas e viciadas da sorte. Deus ou a sorte, escolha.

Parámos numa pastelaria, e, conforme prometido, foram comprados bolos e os refrescos anestésicos para o enfermo e sua família.

Sentado no banco traseiro da carrinha, Reginaldo, com a lástima e a exclusão estampadas no rosto, contempla laconicamente os movimentos irregulares dos edifícios, das árvores e dos bancos. Esta criança, a quem a fome não deu sofreguidão, mastiga calmamente a massa dourada do bolo e engole serenamente o refresco convalescente, ao mesmo tempo que pela sua face negra e rutilante desliza a última lágrima do padecimento físico ou a primeira das muitas espremidas pelo desventrado coração. E quem diz que o choro dos velhos é a maior das tristezas sensoriais ainda não viu Reginaldo chorar.

A carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. “Bom, estamos de volta”.

Um Cibernauta em Moçambique - 02.10.2006 e 13.10.2006

A mais moçambicana das palavras portuguesas é “flexível”. Isto assim em tão larga escala que o seu uso já violentou todas as iniciais regras da semântica, atribuindo-lhe uma magnitude polissémica de abrangência universal. Afinal, tudo o que não é mau é flexível, tudo pode ser assim ou pode ser assado, se corre razoavelmente, é flexível. Portanto, flexível é a adjectivação da positividade, agora, o seu exacto significado, isso não sei! “O exame era fácil?”, “Era flexível”.

Bom, nem a maior indefinição linguística da história poderia arredar-nos do caminho da perscrutação. Pelo visto e, ouve isto, ser flexível é ser maleável, é ser bom, é ser descontraído, é ser parco de regras, é ser conformado, é ser submisso, é dançar com a barriga ao estalo, é, enfim, viver despreocupado, sem programar. Aos olhos de um estrangeiro recém-chegado para umas prazenteiras férias, esta flexibilidade é encantadora. Mas quando se começa a gostar e a admirar este povo, tanta flexibilidade causa certo prurido, depois irritação e a seguir intolerância. Com efeito, do outro lado desta flexibilidade, deste conformismo, desta submissão, desta indiferença, deste deixa andar, está a miséria, a pobreza extrema, as barrigas dilatadas, as crianças de rua, está um dos países mais pobres do mundo, que deve muito do seu mal ao que lhe fizeram e fazem e outro tanto ao que por si não fez nem faz.

Se há regra sem excepção é essa que nos diz dos lugares medianos frequentados pela virtude.

Nesta terra, tudo é programado ao mais ínfimo e detalhado pormenor. Há muitas reuniões. Desfruta-se incomensuravelmente do acto de reunir. E dão nomes pomposos a cada encontro: “Alto convénio trimestral para a implementação, coordenação e reorganização do plano hídrico da região nordeste de Nampula”; “Suma reunião para a definição, concretização e divulgação da metodologia pedagógica adoptada pela província de Nampula”. Podia, sem grande esforço, encher páginas e páginas destes garbosos epítetos, capazes de atafulhar de soberba a mais humilde das reuniões. Todavia, para além da inchada sonoridade, pouco resta, tal é a frequente inconsequência desta profusão de convenções. O plano, para alguns, é um instrumento indispensável ao rigor e ao sucesso, mas para outros é tão-só um grotesco expediente para embuçar a inércia com uma cinética estéril.

Assim, quando alguém diz “isto vai ser assim”, ou, “vamos combinar assado”, pode ser assado ou assim, mas, seja como for, “num tem problema”, o povo é sereno e, sobretudo, perturbadoramente Flexível.

A programação, o aprazamento e o acordo desempenham, na organização deste quotidiano, o mesmo e nobre papel que, nos enterros, é oferecido à viola. E nisto dou por mim nas malhas intrincadas do exagero e da caricatura, mas esta é tão-só a hiperbolizada acutilância crítica que se forja no seio terno e por vezes injusto da benquerença.

No dia seguinte à chegada a Africa, quero logo sentir-me na Europa, no mundo conectado e em permanente convívio. “Posso ir à Internet, Arlindo?”, “Claro, mas estamos com problemas na linha, se calhar não consegues ligação. Aqui, é tudo intermitente, umas vezes funciona bem e outras nem por isso. Vai-te habituando”. Bom, não morrerei por viver uns parcos dias no isolamento informático.

Entro na Faculdade e dirijo-me à sala de informática. Estou feliz por consultar o e-mail. Cheguei há três dias e ainda não atingi o mundo elevado e superior das tecnologias, do imediatismo, da impaciência. “Olá, Willy, tudo bem? Posso utilizar um computador para ir à Internet?”, “Xi, não vai dar, estamos com um problema no servidor e não temos ligação há quatro dias”. E eis-me brâmane em exercícios de domínio da emotividade.

Em conversa com o Sr. Alberto, ilustre e excelente cozinheiro da casa dos missionários, do qual havemos de falar um dia, adepto fervoroso do FCP e grande fã do futebol português, “Agora, ando triste. A antena da RDP avariou e não posso ouvir os relatos. Pode estar assim mais de um mês. Ainda por cima perdi o calendário e agora não sei quais são os jogos”, “Não se preocupe, eu arranjo-lhe já um calendário. Amanhã vou a um café com Internet e trago-lhe isso”. Quem conta com os sapatos do defunto arrisca-se a morrer descalço.

E finalmente acedo à Internet nos serviços da Teledata. “Gostaria de imprimir um documento, é possível?”. A jovem empregada, autora da lamentável opção de misturar uma belíssima tez acastanhada com desfigurados caracóis dourados, “Está em que computador? Ah, pois, esse não dá, é o único. Leve uma disquete, grave o documento e traga-o que eu imprimo-o aqui no meu”... “A disquete que me deu não funciona, tem outra?”, “Claro, aqui está”... “Esta também não funciona”, “Tem uma flash?”, “Sim”, “Então tente com a flash”... “O computador não aceita a flash”, “Ah…, estranho, deve ser o único”. E o Sr. Alberto, tão cioso do seu futebol, tão empenhado em acompanhar passo a passo o caminhar vitorioso do seu FCP, terá de aguardar mais uns dias.

«Bom, isto não é vida! Preciso de um serviço de Internet disponível para os meus caprichos cibernautas». Durante a viagem, quando já me enfastiavam todos os livros, acabei por folhear uma revista da LAM, onde li que a Vodacom disponibilizava um serviço de Internet através do telemóvel. Ora, lamentando este desencontro doloroso com as telecomunicações, decido investir e compro um cabo USB (€15!) para fazer as ligações necessárias. “Dispositivo desconhecido”. «Ainda bem que estou em Nampula, terei facilidade em resolver o problema». Entro numa pequena loja benzida “Clínica dos Computadores” por alguma mente metafórica, e o aspecto claro e arrumadinho do estabelecimento renova a esperança e rejuvenesce as expectativas. “Bom dia. Como está?”. Sentada numa aprumada secretária, a agradável e delicada jovem informática, “Bem, não sei do seu lado”. “Tenho um problema com o meu computador. Quero ligar-me à Internet através do telemóvel, mas recebo a indicação de que o dispositivo é desconhecido. Podiam ajudar-me?”, “Não sei do que está a falar, lamento”, “Não sabe, mas diz aqui que vocês são uma clínica de computadores!”, “Pois, mas não conheço essa tecnologia. Tenho pena”, “Muito obrigado, então”. Mais tarde, a falha desta ligação telemóvel/computador veio a revelar-se no primeiro e, para variar, a inaptidão estava no meu material.

Dias passaram, passou-se tempo onde o tempo parou, até que entrei na Faculdade, dirigi-me, como todos os dias, à sala de informática, e, como sempre, num rumorejo desalentado e exasperado, “Bom dia, Willy. Então, já temos Intenet?”, “Sim”, “E que tal”, “Está muito flexível”.

Os Primeiros Contactos com a Faculdade de Direito da Universidade Católica - 02.10.2006 a 13.10.2006

A pueril Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique encontrou poiso agradável e prometedor naquele que em tempos coloniais foi o Colégio Vasco da Gama, propriedade da diocese, regido por instituições religiosas, uma instituição de referência no ensino. É pois um edifício pejado de portugalidade. As paredes são altas, as salas estão bem dimensionadas, há anfiteatro, há biblioteca, há sala de informática, a estrutura goza de boa saúde, tudo visto, é um sítio onde o trabalho pode ser frutífero, assim esbracejem e se multipliquem os parcos ramos da árvore.

Os recursos materiais não abundam. Com propinas cifradas entre os 500 e os 1.500 USD/ano, mas com um número reduzido de estudantes, parece ser árdua a empresa de erigir uma próspera e bem servida instituição de ensino superior.

A biblioteca é um pequeno e agradável espaço no qual pouco mais de 1000 obras servem o ávido intelecto de alguns e o doce cumprimento da obrigação da maioria. Se tivermos em conta que parte esmagadora da população estudantil está tão perto de poder adquirir um manual como o ermo e glacial Plutão está do ígneo e portentoso astro solar, vemos com clareza o quão essencial é este depositário de sapiência.

É neste sítio que passo a maior parte do meu tempo. No dia 02.10.2006, “Talvez fosse bom atribuírem-me um gabinete”, “Sim, sim, vou providenciar”. No dia 13.10.2006, “Seria mesmo bom ter um gabinete”, “Sim, sim, de segunda-feira não passa, isso é certo”. Protesto e barafusto, mas sorrio por dentro, pois a festa é da paz e da tranquilidade. De facto, não passou de segunda-feira, e posso, com justiça, apregoar dizeres laudatórios sobre o meu gabinete: grande, arejado, com uma belíssima vista, deitada suavemente sobre uma fileira de coqueiros que correm para a Serra da Mesa.

Sem mergulhar em inférteis e incautas generalizações, não estarei a exagerar se disser que parte significativa do Ordenamento Jurídico Moçambicano é um antiquário do Direito Português. Os códigos nucleares, a legislação estruturante do funcionamento judicial do país… Enfim, continua viçosa uma vasta plantação de Decretos e Leis, Portarias e Regulamentos, que não foi ceifada pelo processo de descolonização, que se não desfez nem logrou regressar à procedência numa insegura e indesejada ponte aérea. Os cultores da história recente do Direito português poderão, com proveito, concretizar o velho sonho de H.G. Wells e fazer uma viagem no tempo da jurisdicidade. Neste recanto do planeta, os idos e ilustres mestres do Direito português, por vezes esquecidos nas prateleiras das nossas modernas bibliotecas, encontram uma renovada vida, um último sopro, vestem pela vez derradeira o honroso e prezado traje da referência intelectual.

O povo moçambicano tem o dom do acolhimento, um especial cumprimento que nos envolve e faz sentir em casa. É a luz do sorriso, o dos simples, que se esparge, banha e lava a alma. E assim, as recepções são em geral calorosas, amistosas, daquelas que nos fazem sentir em casa. Ao invés, não é apetecível a reputação com que os congéneres portugueses acarinham o estudante da África lusófona. Uma complacência risonha para com uma congénita ortografia bamba e uma gramática falha de rectidão. Uma indulgência simpática perante uma inalterável profundidade científica suspensa à superfície do mar do conhecimento. Porém, é precipitado e erróneo este nosso, meu, juízo, esta rotulagem diminutiva que fazemos.

Quando pensamos na pobreza africana, a primeira imagem que nos arrasa é a da criança esquálida, quase esqueleto, prostrada em posição fetal num imenso deserto lavrado por estrias, à espera da bênção da morte, enquanto um abutre, espelhando uma inefável indiferença, aguarda tranquilamente que a desigualdade, essa dotada cozinheira, termine a confecção do seu repasto. Mas a pobreza ultrapassa este cenário chocante. O pobre deve a sua condição à exploração, à indiferença e à destruição alheias, mas também à sua falta de capacidade de explorar e desbravar, de se interessar e conhecer, de fundear e construir. Ora, num país pobre, tudo é subaproveitado, a começar pela inteligência. E assim, desenganando-me, concluo verdadeiramente que o estado cultural e intelectual não é congénito e inalterável, mas sim conjectural e mutável.

Os rigorosos e bem definidos contornos da verdade são muitas vezes destorcidos pelo imediatismo em que descansamos, como se os “ques” pudessem dispensar os “porquês”, assim, como se a água pudesse desprezar a fonte. Na boca de alguns o fenótipo do vício é a virtude, mas no espírito de outros o vício aparente é a virtude em progressão.

Em suma, a verdade é que a circunstância onde se insere o estudante de um país africano subdesenvolvido é profundamente distinta da nossa, chegando a roçar, aos olhos de um europeu, as franjas delirantes do surrealismo.

Vejamos o caso de Afonso, que têm de fictício o nome que lhe dou e de verídico as histórias que ouvi. Encetou a aventura estudantil com 8 anos, numa escola pública, na qual, uma professora voluntariosa, com a 6ª classe concluída, lecciona um português de ortografia bamba e uma gramática falha de rectidão, bem como uma matemática de números travessos.

E foi andando e andando, sempre assistido por docentes que resgatam mais valor na sua dedicação do que na sua preparação. Conto a história por este lado honroso, para não mergulharmos na corrupção e na promiscuidade que amiúde desponta no ensino secundário, onde as notas e as passagens valem meticais e outros serviços não venais. Segundo um recentíssimo inquérito, quatro em cada dez raparigas do ensino secundário já foram vítimas de assédio sexual pelos professores.

O nosso Afonso sempre chegou à escola às 7h. Muitas vezes calcorreou extensos caminhos até pôr o pé nos caducos estabelecimentos de ensino que o viram crescer para o conhecimento. Tudo isto com a bênção de um rigoroso jejum, de fazer inveja ao mais crente entre os crentes na virtude do sacrifício. Às 12h., comia um papo-seco com manteiga ou simples, conforme a vontade do pecúlio. As suas pequenas e renitentes células só receberiam o revigorante beijo dos nutrientes às 18h., quando este tenaz estudante comesse uma bola de echima mergulhada num saboroso caril de folhas e raízes.

E assim, pouco a pouco, com mais ou menos respeito pelas regras, o nosso Afonso atingiu o ensino superior, beneficiando de uma bolsa ou do apoio de alguma instituição. Vive na cidade. Encontrou um anexo de moradia, numa rua central. O apêndice era antes a arrecadação dos Senhores, mas agora, estes elásticos 7m2 fazem o quarto de dormir, a sala de estudo, o escritório, a sala de estar, o salão, a sala de jogos, a sala de fumo e a biblioteca deste jovem Afonso. Paga 20 euros pela arrecadação e sobram-lhe 30 para as refeições de todo o mês. Por isso, e para não prejudicar os hábitos digestivos, mantém a mesma dieta de sempre.

Perguntei-lhe, por necessidade laboral que me atormentava, onde podia eu comprar códigos da legislação moçambicana. “Códigos? Aqui em Nampula? Mas aqui não há nada”. E mesmo assim, ultrapassando os muros e as barreiras que se erigem sem dó, vai fazendo o seu cursinho, vai chegando a Sr. Dr.

Nem todos os estudantes moçambicanos são Afonsos, mas não exagerarei se disser que pelo menos 60% dos licenciandos deste país estão familiarizados, total ou parcialmente, intermitente ou eternamente, com o quotidiano afonsino.

Certo homem, destituído de ciência agrícola, jogou num solo saciado e fertilíssimo sementes de qualidade sofrível e viu a sua terra colorir-se de árvores pejadas de frutos deleitosos que atravancaram o seu mirrado bucho. Outro homem, mestre inimitável da arte do cultivo, colocou a mais seleccionada e profícua das sementes no deserto seco e estéril. Definhou na vã espera de que o valioso complexo embrionário vegetal soltasse o recalcitrante e poderoso murmúrio de vida.

Mas há, aqui e ali, em Moçambique e em Portugal e por todo o mundo, sementes que, desafiando esta inexorável lei, germinam e crescem ultrapassando os destinos predeterminados, e eu, plantado nas providentes margens de um Nilo, tantas vezes aquém do que devia, sento-me, aprecio o momento e colho o exemplo.

Por isso, quando um aluno mais expedito me perguntou se eu tinha vindo para passear e ensinar, fui obrigado a pensar nos meu desígnios, na nossa frágil capacidade de pôr a mão e remexer o curso da vida, tal é a infinidade do que escapa ao nosso mais vigoroso intento volitivo, fui obrigado a reflectir sobre tudo isso e acabei por sorrir apenas, convencido, porém, de que vim para trabalhar e aprender.

Tuesday, October 10, 2006

Festa na Comunidade de Gimo, em Nampula - 01.10.2006

São 7 h. e 55m. O Sol africano é particularmente madrugador e, por isso, já está quente e alto quando saímos de casa.

Na carrinha de caixa aberta, eu e o Arlindo atravessamos o portão traseiro da casa que dá acesso à rua. O grupo de animadores da comunidade de Santa Cruz espera-nos junto à porta principal. "Eh, meus filhos! Vamos subir?", "Bom dia, Sr. Padre. Vamos!". E com a agilidade própria dos jovens impolutos, cinco rapazes, com violas e ritmos intravenais, e sete raparigas, trajadas a rigor com capulanas coloridas, pulam para dentro da caixa da carrinha e acomodam-se. O porta-voz abre a mão e dá duas pancadas secas no tejadilho. Podemos seguir.

No caminho, passamos pelo mercado das calamidades, pelos cajueiros e mangueiras, pela vegetação irregular onde despontam regularmente os embondeiros. Enfim, repisamos os caminhos trilhados no dia anterior. Avançamos pela estrada de terra batida, inóspita e inacessível a um automóvel convencional. As crianças que habitam com as famílias as casas solitárias no mato, se sentadas e perdidas em jogos rudimentares de autoria própria, acenam à nossa passagem, "Estou a ver-te, vê-me também!".

Na caixa da carrinha, o grupo de jovens animadores não cessa a cantoria, sempre naquele tão alegre e difundido registo africano.

Depois de trinta minutos de viagem, chegamos à comunidade de Gimo.

Vários grupos de pessoas esperam calmamente o sacerdote, refugiando-se do Sol quente e impiedoso na sombra oferecida pelos cajueiros. Esta disposição gregária é criteriosa e padronizada. Aqui, os anciãos e chefes das várias comunidades presentes. Ali adiante, os jovens, mais à frente, as mamãs. A folhagem de outra árvore acolhe os intermédios, essa gente que já se calça e junta algum dinheiro, que já vai à cidade com frequência, fala português e ocupará no futuro, seguramente, um lugar destacado na respectiva comunidade. Tudo minuciosamente estratificado, sem acasos ou confusões. Cada qual conhece o seu posto e a quem é devida obediência. Salvam-se, como sempre acontece, as crianças, que deambulam desorganizadamente por onde lhes apraz, correndo e pulando, em brincadeiras que não estão ao meu desprovido alcance compreensivo.

A nossa chegada interrompe toda a actividade convivencial. As atenções dirigem-se para os nossos ainda não dados passos, paras as nossas ainda não pensadas decisões.

É o ancião da comunidade de Gimo quem se dirige a nós. Cumprimenta-nos na sua imutável seriedade cordial, na sua pacatez acolhedora, na sua timidez simpática. Elegantemente enfatuado, orgulhosamente metido naquelas calças e naquela camisa de uma cor inexistente, entre o rosa e o lilás, caminhando sem cerimónias nuns refulgentes sapatos bordeaux. "Tudo pronto, ancião?", "Sim, senhor Padre, está tudo preparado".

De entre o povo expectante, há uns quantos que não aguardam as ordens ou permissões e dirigem-se a nós como pombos que caiem com instinto rapino sobre os amarelos e sumarentos grãos de milho. É difícil explicar o que sente um "Jacinto super civilizado" e bem alimentado quando cruza os olhos com uma criança africana subnutrida. Aquele olhar profundo e curioso, tão sereno e observador, tão cruelmente envergonhado e alegre. A barriga proeminente e arredondada, tenazmente forjada pela fome. As peúgas são grãos de poeira que se depositam gentilmente até cobrirem os seus pés, tão delicados e peculiares. Os calções encardidos, as mais das vezes, são calças largueironas e mal ajeitadas. A sujidade das camisolas denuncia a frequência intermitente do uso. Afinal, a imundice é, não raramente, a delatora da pobreza e da miséria. Enfim, é um cenário altamente invulgar, verdadeiramente único, que nos arrebata de ternura, fulmina de vergonha e nos corta o coração como uma lâmina afiada. Foi de longe o maior choque emocional que já experimentei até hoje. A criança africana é, sem margem para contestação, o ser vivo mais belo e complexo que este planeta irregular nos pode oferecer. E nisto faço-me ditador da estética e dos valores, mas é com conhecimento de causa que tomo esta atitude.

Enquanto estes pequenos deuses me observam, um adolescente, contando não mais do que 12 anos, dirige-se a mim com fulgor e entusiasmo, fixando-me com um sorriso rasgado e reluzente. Reconheço-o do dia anterior. É um rapaz a quem tínhamos dado boleia para a cidade. Sorrio também. "A bênção, senhor padre". Ergo a mão direita, flicto os dois últimos dedos, faço o sinal da cruz, "Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Vai em paz, meu filho".

O Arlindo, deitando mão de uma voz viva e determinada, incita todos os convivas a reunirem-se à sua volta. A adesão é geral. O pároco explica o fim e o propósito da cerimónia. Neste dia benze-se pois a nova capela e celebra-se o dia do padroeiro da comunidade de Gimo.

A construção desta nova casa de deus tem, como tudo, a sua história. Houve tempos em que as missas eram celebradas numa improvisada e rectangular estrutura de adobe coberta por faixas de capim. Mas esta pequena comunidade, nada e criada no mato, com não mais do que 70 membros, achou que podia almejar a mais. Juntou-se dinheiro, chamou-se um pedreiro da cidade, houve mote e impulso organizativo, o Arlindo facultou auxílio ideológico e algum dinheiro, o ancião liderou exemplarmente o seu povo, apelando ao trabalho, à ajuda e à união. E desta dinâmica gregária e unidireccional brotou, como num parto esforçado e sofrido, a nova e simples capela da Comunidade de Gimo. Este pequeno edifício, qualitativamente superior a todas as habitações da comunidade, não é apenas um lugar de deus, é antes a prova acabada de que naquele grupo de seres humanos foi colocada a semente da existência comunitária, aquela que se traduz na partilha do que há e do é necessário fazer para que haja.

É este trabalho educativo que admiro profundamente. E os mentores deste crescimento social são, no que me é dado a ver, algumas comunidades missionárias. Em regra, os missionários não se confundem com a população. O nível de vida, a instrução e as exigências são amplamente superiores. Contudo, eles dão parte do seu tempo e da sua vida em prol do crescimento destas gentes. Explicando com mais precisão, não são eles que vivem dentro das comunidades, é antes a sua mensagem de paz, amor, respeito, educação, cultura e liberdade que é lançada como um bálsamo no seio deste povo oprimido pela pobreza e pela exclusão social. Em suma, o povo pobre de Moçambique foi excluído da humanidade, e alguns missionários, humanos de primeira água, chamam o povo de volta, exigem o seu regresso, depositam no ventre desta África acorrentada o sémen da Liberdade.

A capela ocupa cerca de 100 metros quadrados. A única estrutura interior é o altar-mor, encimado por um crucifixo de pau-preto. São simples as verdadeiras moradas de Jesus.

No chão de esteiras, mulheres, homens e crianças ocupam os seus lugares. O Arlindo coloca-se atrás do altar-mor e é ladeado pelos notáveis da celebração, sendo eu, ignorante e deslocado forasteiro, chamado a integrar a alta estirpe do festim.

Gastaria sem proveito o meu tempo se me dedicasse a descrever uma cerimónia religiosa participada por uma comunidade africana do mato. Nem a minha elevada presunção permite tamanha ousadia. Todavia, não seria justo deixar de enunciar, com prejuízo do rigor, duas ou três particularidades.

Os paramentos são adornados com cores e imagens vivas alusivas a este continente. A celebração da missa é propositada e consentidamente intercalada por cânticos religiosos tradicionais, durante os quais o povo louva deus na sua língua, no seu código, no seu coração. Cada cantar abre um corredor central na massa da assistência e algumas jovens, nas quais se entrelaçam luminosas capulanas, bamboleiam, desenham movimentos únicos, são pequenas chamas bruxuleantes que num repente recrudescem formando labaredas gigantes e incontroláveis. Todo o povo canta e bate palmas, e, nestas esparsas parcelas de existência estes alegres reféns da pobreza gozam o prazer da vida. E eu, tão agnóstico, tão tristemente descrente, mas tão admirador da mensagem de Jesus, eu, que vejo nestes ritos apenas um fenómeno sociológico e antropológico, sou tolhido pelo braço extenso e avassalador da emoção, contemplo este espectáculo uma vez mais e cerro os olhos.

A cerimónia continua neste ritmo cintilante. Umas vezes fala-se em português e outras em macua. A tradição cristã é misturada com os ritos nativos, é dada a palavra aos vários líderes, que falam ao povo, tal como Jesus pretendia, uma igreja universal e multicultural, um espaço de amor e tolerância, de respeito e de ajuda.

A celebração aproxima-se do fim e é chegada a reprodução da última ceia nas vestes da eucaristia. Todos, sem excepção, conhecem de cor as palavras que o Senhor proferiu na sua última refeição. É a aculturação do espírito no seu auge. A minha estupefacção medra sem precedentes. Percorro atentamente aqueles rostos lavados em fé e fervor espiritual. Aqueles lábios salientes e preenchidos articulam verbalmente o penúltimo legado do filho do criador. Entre a multidão absorta na prece, pode ouvir-se a uma pequeníssima criança, sentada, de pernas esguias, olhar vazio e barrigo dilatado, "senhor, eu não sou digno que entreis na minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo."

Findados os rituais, foi a vez de se preparar o banquete dos pobres. Alguns quilos de arroz, echima (farinha de trigo cozida) e oito euros de peixe congelado para cento e alguns comensais. Como se tratava de um dia de festa, cada três tiveram direito a um peixe. O povo come e conversa no chão, ocupando as sombras disponíveis. Toda esta azáfama culinária talhada em potes de barro aquecidos por fogueiras improvisadas.

Durante a preparação do almoço, um numeroso grupo de jovens junta-se à sombra de uma árvore. Cantam e dançam sem parar, acompanhados por batuques habilmente sonorizados.

Mais adiante, divirto-me a brincar com as crianças. Apetece-me apertá-las, metê-las no coração e guardá-las para sempre. Mas temo que alguém leve a mal uma apropriação em tão larga escala. Por isso limito-me a passar-lhes a mão no rosto e a dar-lhes o meu mais aberto e genuíno sorriso. Elas olham envergonhadamente para o chão e retribuem o sorriso. O pobre tem este clamoroso defeito: agradece muito o pouco que lhe dão.

Já refeito e tomando consciência de mim, passeio por entre o povo, tentando passar despercebido, mas a minha alvura não me permite a discrição desejada. Procuro usar uma expressão de humildade, de quase servilismo, desejando que não me sintam superior, mostrando-lhes o quão humilde sou, disfarçando a minha hipocrisia, os meus EUR350 de roupa, escondendo a fartura em que vivo desde o primeiro sopro de vida. Sou levemente incomodado por um sentimento indiferenciável, o qual, paulatinamente, toma contornos definidos e uma grandeza esmagadora que me provoca um desconforto maligno e insustentável. Esta pobreza envergonha-me, mostra-me como sou desprezível e egoísta, e é isso que não suporto.

Eu, o Arlindo e dois ou três notáveis somos levados para uma pequena casa de adobe onde nos servem, com a esforçada sumptuosidade dos simples, galinha guisada e assada no forno. É provável que este episódio seja avesso a elucubrações axiológicas. Talvez seja a tradição desta gente, e é-o de facto, este paradoxal hábito de oferecer o melhor que têm aos forasteiros ilustres. Todavia, enquanto me dedico afincadamente a descarnar a pata da galinha cafreal, cruzo o olhar com uma criança subalimentada que brinca na rua e, salve-se isso, ponho termo à refeição.

As 15h. chegam. O grupo de animadores toma o seu lugar na caixa da carrinha e regressamos a Nampula. O Arlindo explica-me a organização hierárquica destas comunidades e o processo de aproximação dos missionários às mesmas. Nesta página, convenço-me de que o Arlindo estima esta gente, e deus sabe o quanto esta gente precisa de gente que olhe por si.

Respirar os Primeiros Ares de Nampula - 30.09.2006

Nampula é a terceira cidade do país. Situada no Norte, a 250 Km do Índico, perto da Ilha de Moçambique e do peculiar porto de Nacala. Restam ainda muitas vivendas coloniais, que se dispõem na margem das largas estradas e avenidas, onde cajueiros, árvores­-da-borracha, embondeiros e outras emprestam o verde da vida à letargia do cimento. Hoje fustigada por elevados índices de degradação, Nampula terá sido, na era colonial, um maravilhoso paraíso, um local único para os brancos oriundos da metrópole. Adiante, haverei de reservar tempo para conceder a este lugar a atenção merecida.

Não dormia desde as 9h. de quinta-feira, dia 28, de modo que não curei de respeitar a sirene disciplinadora do despertador e dormi até às 11h. Depois de breves arrumações, chegou o Arlindo. Almoçámos e propôs-me "Queres ir até uma comunidade ali no mato? Amanhã faremos lá a bênção da nova capela e estamos a preparar a festa. Então, queres ir?". Eu já tinha aceite quando ele terminou o primeiro "queres ir", mas, por educação, só dei o assentimento depois do onde e porquê. "Claro que sim, vamos embora".

Saímos de casa. Dois senhores de meia-idade aguardam-nos à porta. É o ancião da comunidade de Gimo, a tal que inaugura a capela, e um ajudante. "Como é, meus irmãos? Vamos comprar as coisas para amanhã?", "Vamos, Sr. Padre".

Eu e o Arlindo entrámos para a carrinha e os dois festeiros subiram para caixa. Numa enorme estrada perpendicular àquela onde se situa a casa dos Missionários Combonianos, encontrámos algum comércio de rua. Parámos no Peixe da Mamã, onde comprámos uma barra de peixe miúdo congelado que custou 270.000 Meticais (EUR8). Mais adiante, noutro estabelecimento comercial de lona e estaca, aprovisionámo-nos de arroz e óleo. E assim se comprou o necessário para confeccionar o almoço de mais de 100 pessoas. Os Meticais, cerca de EUR15, saíram do bolso do Arlindo. Não compreendi o critério da procedência. Só mais tarde percebi que era o da necessidade. De facto, aquele dinheiro representava um ónus pesado para a comunidade de Gimo, de forma que o Sr. Padre, gentilmente, suportou os gastos.

Seguimos na mesma estrada em direcção ao exterior da cidade, ao mato, à densa florestação que rodeia a cidade de Nampula. Á medida que nos aproximávamos do fim do alcatrão, duas fileiras quase intermináveis de tendas escoltavam os carros que passavam. Eis o Mercado das Calamidades. Este imperdível espaço comercial deve o seu nome a um processo transaccional muito peculiar. Como é consabido, o hemisfério norte, satisfeito e aliviado por ajudar os irmãos sulistas, organiza campanhas de recolha e doação de roupa em desuso. No início, este altruísmo era a resposta a uma tragédia, provocada pela guerra ou por qualquer catástrofe natural. Ou seja, era a reacção do povo bem sucedido às Calamidades que assolavam os desventurados. Uma vez que esta gente vive permanentemente em calamidade, algum benemérito compreendeu que a intermitência das doações prejudicava a procura, e estas campanhas entraram na vida quotidiana das urbes desenvolvidas. E assim, as roupas dos ricos chegam com frequência às mãos dos pobres distantes. Mas esta transferência não obedece às leis da economia. Há aqui um processo em que todos ganham. Primeiramente, o doador que dá alivia o coração, convence-se da sua bondade e decide compensar-se. Entra num pronto-a-vestir sumptuoso e gasta, gasta, gasta. Destarte, ganhou o europeu no alívio da alma e no prazer da aquisição, ganharam os vendedores de roupa, os industriais e trabalhadores têxteis dos países em vias de desenvolvimento, onde são produzidas aquelas roupas. Nisto, os trapos atingem os países subdesenvolvidos em enormes contentores. Aqui, as roupas são vendidas a um distribuidor, que fornece os grossistas e estes os retalhistas e, por fim, a mercadoria atinge o Mercado das Calamidades. O preço é muito atractivo e, em boa verdade, esta é a única fatiota ao alcance desta gente. Ou seja, desafiando as leis do mercado, todos ganham. Mas este paradoxo é alimentado e suportado por um postulado arrepiante: o lixo dos ricos é o ouro dos pobres.

A população de jovens vendedores recosta-se preguiçosamente em cadeiras ou no chão. Acenam a quem passa. Se venderem, óptimo, se não, "num tem problema". É assim este povo, descontraído, apático, reverente, humilde.

Prosseguimos em direcção ao mato, até entrarmos numa estrada de terra batida, uma picada, onde apenas sobreviveria um veículo todo-o-terreno. Lá ao fundo, erguem-se as modestas montanhas que formam uma paliçada natural à volta de Nampula.

A vegetação é agreste e virgem, inculta, salvo algumas machambas dispersas aqui e ali. Também aqui abundam os cajueiros, as mangueiras, os embondeiros e outras. O verde da vegetação e o castanho-escarlate da terra dominam totalmente o espectro cromático. Estamos verdadeiramente no campo. Era nestas zonas que, na altura da ocupação portuguesa, os autóctones habitavam.

Encontramos algumas palhotas, onde habitam famílias numerosas. A taxa de mortalidade infantil é elevada, mas, em compensação, as mulheres começam a procriar com 14 ou 15 anos e têm mais de 7 ou 8 filhos. Moçambique é o país das crianças. Se pensarmos que, na Europa, as mulheres têm o primeiro filho, em média, aos 29 anos, e raramente passam das duas crias, podemos intuir com facilidade, também neste capítulo, o enorme fosso cultural que nos separa.

Estas casas de mato não têm, em princípio, divisões. São quatro paredes de tijolo de adobe cobertas por capim. Todos comem, descansam e dormem no mesmo espaço. Por vezes, as famílias incluem não só os membros nucleares, mas também sogras e sogros, tias, crianças órfãs da sida, da guerra e da malária. Tem razão pois o Arlindo quando me interpela revoltado "Qual é a hipótese de pudor e de moral desta gente? Que hipótese têm eles de fugir à promiscuidade?".

Chegamos à comunidade de Gimo. Dois grupos de crianças e outro de adultos encontram-se sentados no chão, à sombra de algumas mangueiras, escutando as palavras evangelizadoras dos catequistas da comunidade. De bíblia na mão, socorrendo-se esporadicamente da Palavra revelada, estes novos mensageiros propagam a fé, expõem a Verdade. A evangelização é, como se adivinha, trabalho dos missionários, que formam elementos da comunidade para depois os lançarem nas engrenagens de deus. O ateu convicto, sentado no sofá, irado com a religião, aquele indivíduo que invoca a Santa Inquisição para criticar a igreja actual, fará pouco deste trabalho, alegando tratar-se de um desperdício, um massacre ideológico. Todavia, é eticamente profundo o conteúdo das palavras de Jesus e parte da mensagem apela a uma especial organização social. A auto-anulação proclamada por Jesus é, se tarefa de um só homem, a morte certa, a destruição do seu autor. Todavia, enquanto atitude universal e generalizada, é o fim da opressão, da guerra, da exploração, do abuso, e, desta forma, é o começo da verdadeira liberdade, da realização humana, da salvação. E eu, cada vez mais descrente, mais distante da fé, vejo medrar o meu entusiasmo pela teoria moral e ética de Jesus. É o chamamento para uma Revolução calada e pacífica, do espírito, operada a partir do interior de cada qual, através de uma gigantesca inundação de bondade e de amor. E este trajo revolucionário serve a todos, crentes e não crentes, letrados e ignaros, desgraçados e prósperos. E assim sendo, este trabalho de evangelização, se adaptado às mentalidades receptoras, se respeitador das tradições existentes, é, a meu ver, uma pedra preciosa neste rochedo feito estéril pela fome, pela pobreza, pelo analfabetismo, pela opressão e pela exclusão.

Entramos na capela. Enquanto o Arlindo e os responsáveis pela comunidade trocam ideias sobre a festa, tento cativar uma criança com dois anos mal feitos. Bato quase silenciosamente no jambé e olho para ela à espera de uma reacção. Fixa-me, ri-se e, paulatinamente, junta-se a mim, tomando de imediato as rédeas do comando musical. Sentei-me para ficarmos ao mesmo nível e ali nos quedámos, cada um batendo à sua vez, sorrindo um para o outro, e tive, pela primeira vez desde a minha chegada, um momento de plena paz.

"Ó meu irmão, já viste a tua filha? Com um branco estranho, ãh, toda divertida e quê, pôxa, é raro...", "É, Sr. Padre, é verdade, é raro", "É a tua mais velha?", "Não, Sr. Padre, é a primeira".

A Viagem - 28.09.2006 e 29.09.2006

As partidas, mesmo quando desejadas, sofrem sempre desta enfermidade inexpugnável que se traduz na separação. E isto agrava-se quando se deposita tanto empenho na criação e na manutenção dos afectos.

É afogado numa saudade adivinhada que parto para uma vida e um mundo desconhecidos. De facto, a circunstância de a UCM não ter definido convenientemente os contornos desta colaboração deixa-me um pouco apreensivo sobre o futuro próximo. Neste pesaroso momento da despedida, liberando-me de restrições jactanciosas, devo pois confessar que também o medo toma o seu lugar no meu espírito. E a verdade é que, sendo-me legítimo chorar o apartamento, aproveito e derramo igualmente lágrimas de temor.

Comove-me a atenção que me foi concedida neste momento de despedida. Uma grande festa, muitos telefonemas e mensagens, uma comitiva no aeroporto, um derradeiro adeus paternal e maternal na porta de embarque, um último beijo de amor mesmo antes de entrar no autocarro que me levaria ao avião. Não esqueço os que se lembraram de mim nesta hora que, inusitadamente, me pareceu tão decisiva. É o preço a pagar por uma vida altamente convencional e rigidamente programada. Ao mínimo desvio, somos levados a pensar que poucos estarão a viver uma situação tão peculiar e a submeter-se a tanto risco como nós.

Em suma, sofri e sofro gravemente com a separação, mas consola-me esta perspectiva de realizar um sonho, esse arroubo divinal da realização que, embora não provoque o ocaso da dor, da saudade e do temor, amaina eficazmente os temporais do espírito e as dúvidas da mente.

No avião, arrumaram-me num lugar aprazível. No centro, longe da janela e no enfiamento da asa. Sempre que entro num avião, levo comigo a alta probabilidade de uma tragédia. Tendo em conta as estatísticas e o estádio tecnológico, esta convicção é aceitável. "Pois..., de facto...., não, da TAP nunca caiu nenhum. Ah, não, na Madeira, sim, acho que aí houve um que viu pista a mais e só parou no mar, mas é um caso isolado. Viajas na TAP, é?", "Sim, na TAP... É quase certinho que não sobrevivo. Mas tem de ser. Um tipo também não pode ficar no mesmo sítio toda a vida".

Acolhe-me um triângulo humano burlesco.

Ao meu lado esquerdo, uma portuguesa emigrada na África do Sul. O sobrepeso, a gargalhada farta e balofa, as unhas pintadas com a exactidão com que a chuva-molha-toldos lava as ruas da cidade, a simpatia, um inglês mais lusitano que o galo de Barcelos e o rigor das contas públicas, enfim, tudo isto junto a fazer prova mais plena que a certidão de nascimento. Esta respeitável senhora lê e exibe um pequeno livro, nomeado "Wanted Angel" por quem o deu à estampa, ou então por algum editor que achou "Hot Springs" pouco apelativo. Elaine Fox, a autora deste repasto literário, deu o seu assentimento a uma capa berrantemente colorida, na qual dois jovens e desnudados corpos se entrelaçam num doce e tórrido bailado. Adivinho, com justeza, um daqueles romances semi-eróticos, nos quais se diz tudo menos o essencial, mete-se a chave à porta mas não se roda a fechadura. Mas é precipitado o meu juízo. Olho de soslaio para o texto e leio com deleite "oh god! Oh god!"

No vértice superior do triângulo pontifica uma rapariga aloirada e esbranquiçada, da boca da qual sai um descomplexado português moçambicano. A insónia persistente traz-lhe uma considerável preocupação. Bebeu um copo de vinho ao jantar, outro antes e outro depois. Por fim, colocou sobre tudo uma manta calorosa de conhaque. Sempre que solicita uma bebida à hospedeira, por vergonha do alheio ou por convicção autónoma, adianta "...Sabe?, é que se não bebo, não consigo dormir...". E assim, atestando e reenchendo, escorropichando copo atrás de copo, logrou etilizar-se a preceito. Ri, a voz está mais colocada, guincha, mete conversa com os restantes passageiros, enfim, uma maravilha de se ver. Mas não dorme.

A completar este triângulo, do meu lado direito, habita um senhor com o tempo estampado na face. Ri e dorme numa alternância tão frenética que me faz temer pela sua sanidade mental. Há pouco, o comissário de bordo, interessado em dar-lhe a papelada alfandegária, que haveria de preencher e entregar à chegada, perguntou-lhe para onde ia. O vetusto cavalheiro perguntou estremunhado "Ãh?" e depois de escutar novamente a questão respondeu sorridente "Vou para onde me levarem". O comissário de bordo, atónito com tamanha disponibilidade, entregou a este homem sem destino os dois formulários, o da África do Sul e o de Moçambique, os quais foram recebidos com a indiferença de quem, desinteressadamente, não compreende o que está a acontecer.

A escala em Maputo permitiu-me uma visita perfunctória a esta cidade. As avenidas largas, os resquícios do estilo arquitectónico luso, a degradação e as esporádicas habitações de luxo permitem-me concluir, de forma provisória, que Maputo é uma cidade na qual se perseguiu e destruiu o colonialismo e onde grassa a desigualdade. Voltarei em breve para confirmar esta primeira impressão.

Às 20h. e 23m. do dia 29 de Setembro, mais de 24 horas passadas sobre a partida, aterro em Nampula. Cansado e angustiado, recebo com alegria o encontro com o Arlindo que, com a simpatia de sempre, me recebe no Aeroporto.