Wednesday, December 06, 2006

Epílogo - 28.11.2006

Fui com o Arlindo a casa do Reginaldo, aquela atravancada de vermes e degradação. Fomos ver as obras de recuperação patrocinadas por algum benfeitor. Pergunto ao Reginaldo “Passaste de classe?”. Diz-me “Sim, passei.”. Deita os olhos ao chão, toma coragem, “Agora, gostava de receber um presente.” E de facto, tem razão este Reginaldo, é no premeio devido e na reprimenda merecida que também está a base da educação, da motivação, da gestão de seres humanos. Salvo se houver criança de 10 anos feliz e realizada apenas com os benefícios da instrução ou trabalhador satisfeito somente com os lucros e sucessos do empregador. Se houver, é adulto ou é patrão.

Fado Menor - 25.11.2006

Quem vê de fora não pode deixar de parar e pensar. Dentro da pequena cozinha da casa dos missionários, quatro homens dispõem-se em torno de uma mesa de metal, no cimo da qual está um minúsculo leitor de cassetes. Um animado electricista brasileiro, um padre italiano erudito linguista, um cozinheiro moçambicano de coração largo e um outro português. Das débeis colunas do engenho sai, com dificuldade, um tremido e chorado som de guitarra portuguesa acompanhada pela límpida voz da Amália. Os ouvintes estão absortos nas memórias, nas saudades, no que a vida poderia ter sido. Todos tão diferentes e tão unidos por aquele momento. Parece ser também esta a alegria do povo a quem se pode comprar o chão sagrado, mas a vida não. Há quem diga que do fado ou se gosta ou não se gosta. Não é verdade. Do fado ou se gosta ou não se conhece.

Moçambique Adentro - 14.11.2006 a 18.11.2006

E do Maputo lá partimos para Nampula, eu e o meu pai. No avião, ao nosso, lado está uma senhora com cerca de 65 anos. Tem um aspecto simples e agradável. O meu pai, com a espontaneidade do costume, pergunta-lhe logo de onde é, para onde vai, o que faz, e, mais arrojo ainda, quantos anos tem. Sorrindo, “Uhmm, já tenho muitos, muitos, já sou muito velha. Tenho aí uns 30.” Não sabe qual é a sua idade, e isso é muito comum entre esta gente. Para quem, como nós, se habitua a contar os minutos e os segundos, as horas e os minutos, os dias e as horas, os anos e os dias, para esses, dizia, esta ignorância só pode despertar um sorriso enternecido. Mas será que saber quantos anos já vivi me permite saber quantos hei-de viver? Será que a idade me diz quanto posso e como posso fazer? O tempo e o espaço são os grandes referenciais da vida quotidiana, dos projectos futuros, das memórias passadas, mas aqui os seus contornos são mais incertos, o seu significado é mais sibilino e a sua utilidade mais duvidosa.

O Arlindo, com gentileza e amizade, disponibilizou-se para nos mostrar alguns dos belos lugares da província de Nampula.

Avançamos pela estrada entre Nampula e Nacala. Estará ao nível das nossas estradas nacionais. Mas já é um grande avanço. As vias são um determinante impulso para o desenvolvimento. A riqueza da humanidade, a material também, provém da cooperação, da coexistência, de sermos muitos e de nos encontrarmos, de coincidirem tantas das nossas necessidades e de divergirem tanto as nossas capacidades. É por isso que o isolamento nos faz minguar, embrutecer, empobrecer. As acessibilidades aproximam-nos, tornando-se não a riqueza em si mas um dos instrumentos para alcançá-la. São grandes as esperanças correctamente depositadas nesta estrada. Hão-de confirmar-se. Dirigimo-nos a Nacala. Na orla da estrada dispõem-se muitas palhotas de adobe e capim. Ao longo de 190 quilómetros, pessoas e mais pessoas. Alguns gozam, sentados, o refrescante crepúsculo. Mamãs, com bebés às costas sustidos pelo tecido colorido e resistente das capulanas, debruçam-se sobre a terra da machamba, onde depositam grãos de milho, os quais, depois das primeiras chuvas, hão-de medrar e servir de alimento. Outras, depositam as forças e o tempo no sobe e desce ritmado do gigante pilão, que cai pesado sobre a mandioca contida no largo almofariz, provocando a desagregação, produzindo a farinha, a base alimentícia de 70% da população moçambicana. Ao aproximamo-nos do litoral, a terra vai aplanando, os embondeiros tornam-se mais frequentes, bem como aquelas pequenas árvores de tronco esguio e ondulado, com uma bonita copa convexa e achatada, tão comuns nas paisagens africanas mais difundidas. Na berma da estrada, crianças e jovens que vendem mangas e castanha de caju expõe o seu produto aos viajantes, na esperança de trocarem por dinheiro os filhos das árvores.

Noutra ocasião, perguntava-me o Arlindo “Quais são as perspectivas de futuro desta gente que vive distante da cidade?”. De facto, o seu universo é estreito, contido num recipiente acanhado. Cruzaram-se com a tecnologia quando um familiar da cidade trouxe de presente um rádio. Foi um passo significativo, pois assim acercaram-se mais um pouco. E estes são privilegiados, porquanto a proximidade da estrada e da linha de comboio lhes explica que há gente a ir e a vir, um mundo aquém e outro além, e isso já muito. Mas se estes se podem encostar e tocar com o nariz no curto horizonte, o que fará daqueloutros perdidos no mato, onde não chega a electricidade, o telefone. A vida desta gente é, desde o início, trabalhar a terra com fraca arte, colher o que a terra dá, pouco fazendo para que ela dê alguma coisa, fazê-los, dar-lhes luz e criá-los, calcados por uma tradição tantas vezes carcerária e difusora de medos. Vivemos nestes hectares, o dia a dia, até ao dia do soçobro, o nosso espaço não pertence a este tempo.

Nacala é uma cidade litoral, proprietária de um dos mais magníficos portos naturais deste planeta e seguramente o melhor de Moçambique. Este albergue de quem anda sobre o mar, com os olhos postos na Índia, um dos maiores mercados do mundo, goza de uma localização geográfica digna de criar inveja. Sito numa bonita baia, beneficia da profundidade e do sossego das águas, as quais assim permanecem até à costa, permitindo aos grandes barcos, batelões, escaleres, chalupas, às barcaças e aos navios, um atracar perfeito. A cidade, em sentido próprio, inicia-se numa encosta que vai descendo até ao mar. As suas dimensões são reduzidas. Alguns edifícios, algumas casas de considerável luxo, e, muito bom, uma razoável quantidade de indústrias. Nos arrabaldes, um grande aglomerado populacional junta-se, ocupando palhotas ou casebres, interessados na riqueza e nos postos de trabalho dados à costa pelo pacífico ondular do Índico. Fica a sensação da existência de dinheiro a circular neste lugar. São os benefícios dos portos, das alfândegas, dos armadores, da exportação, das empresas que, inteligentemente, se avizinham dos pontos de contacto com o exterior. Pela primeira vez, desde a chegada, sou invadido por uma profunda esperança no avanço deste país. Se não se criarem distorções interesseiras, Nacala virá a ser uma grande cidade de África, um motor de crescimento para o norte de Moçambique, um zéfiro marítimo de progresso e bem-estar espalhando-se em direcção ao mundo. Esperemos pois que o desenvolvimento seja sustentado, a meritocracia presida à distribuição da riqueza, e, não menos importante, haja vontade de trabalhar bem, com seriedade, sem improvisos, com planos cumpridos, com espírito comunitário. Tudo visto, também nós zarpámos em direcção a outros portos.

Chegados à entrada da ponte, observamos, a cerca de 3 ou 4 quilómetros de distância, o que terá sido um lugar de fadas, dos mais belos desta terra, ainda hoje património da humanidade, a cidade que Italo Calvino gostaria de ter inventado e descrito. Atravessamos a ponte estreita e pusilânime, onde não cabe mais de um carro. As obras de beneficiação em curso fazem pressentir a sua antiguidade. Entramos, finalmente, neste fabuloso paraíso. No início, logo encontramos os habitantes do arquipélago metidos em azafamados mercados. As intermináveis filas de panamás de capim dispõem-se sobre os fracos tijolos de areia, explicando-nos que antes da cidade de cimento, colonial e lusitana, está outra mais modesta. Muitas pessoas fugiram para este local durante a guerra e agora pretendem permanecer. Veio a Unesco e construiu em terra firme uma pequena cidade com escolas e hospitais, casas e casinhas, óptimas condições para começar uma vida. Mas isto de uma pessoa se acostumar ao seu lar tem que se lhe diga. São os cantos e os varandins, as rachas e os cheiros, até os buracos das telhas, tudo gera intimidade, cumplicidade, hábito, e depois é o cabo dos trabalhos para dar um passo, mesmo quando, objectivamente falando, seja um passo para melhor. Ultrapassado o primeiro departamento, mergulhamos na antiga capital de Moçambique. Uma cidade de edifícios baixos mas airosos, com varandas de mármore trabalhadas. As ruas são ruelas, estreitas e pitorescas. Todavia, as casas estão muito degradas, sendo apenas possível saboreá-las no nosso imaginário e não apreciar o quanto são. Mas assim como é preciso imaginar Sísifo feliz, também é necessário pensar estas quase ruínas rebocadas, pintadas, cobertas por telhas escarlate de barro cozido. Só assim, através da fantasia, é possível recuperar e gozar a magia e a beleza singular deste lugar. Deparamos com a estátua de Camões. O príncipe encontrou aqui inspiração e pouso adequado para potenciar a sua genialidade e escrevinhar parte dos Lusíadas. Visitamos a bonita casa onde um dia habitaram os vários governadores de Moçambique. Alguns edifícios estão em processo de recuperação, produzindo-se assim um lampejo de esperança, uma crença de que este ainda voltará a ser um dos locais mais belos do mundo. Almoçamos em saudável confraternização à beira mar. Regressando à procedência, atravessamos, novamente, a antiga ponte entre o céu e a terra, deixando para trás aquela que é, devida e indevidamente, a famosa Ilha de Moçambique.

Calcorreámos 30 quilómetros de picada inóspita, por entre os já corriqueiros cajueiros, as familiares mangueiras e os sempre peculiares embondeiros, até chegarmos à missão da Mueria. São quatro os edifícios principais. Do lado esquerdo, a casa dos missionários, atrás da qual se queda o lar de raparigas estudantes. No meio, a escola, e, do lado direito, o centro de saúde. Nos tempos, este último era a casa dos padres, mas depois da independência e das nacionalizações foi feito casa de doentes e de curas. Não conheci um missionário revoltado com este desapossamento, “Se fizerem um bom uso, por nós está tudo bem”. E, penso eu, é o que acontece neste caso. O centro de saúde está ao serviço dos pobres e entre o pessoal médico e os religiosos reina um bom espírito de convívio, cooperação e entendimento. A irmã Maria, muito gentil, bondosa e serena, leva-nos a visitar os locais mais interessantes. Na fachada do centro de saúde destaca-se um alpendre sustido por quatro robustas colunas. Sob este abrigo, uma mamã entrega a sua mama a uma criança chorosa e nua, ávida de alimento, a qual, depois de começar a aspirar o leite materno, se tranquiliza e interrompe a reclamação. A directora do centro de saúde tem o conveniente nome de Esperança. É uma enfermeira jovem, alta e bonita, com a pele escura salpicada de sardas negras. Seguindo o seu passo, percorremos as várias salas. Aqui os doentes com malária, ali os nascituros e respectivas parideiras. Não chegámos à ala dos tuberculosos, por não ser certo e seguro o poderio do nosso sistema imunitário. O edifício também está enfermo. O estuque desmembra-se aos poucos, o chão é já irregular e desequilibrado. Não há nada que dure para sempre, salvo se a mão benemérita da continuidade for corrigindo, reparando, alimentando, adiando, enfim, o cumprimento da regra imperiosa segundo a qual tudo acaba um dia. Os medicamentos não abundam, bem como os meios de diagnóstico. Faz-se muito com pouco, ou não fosse essa a sina desta gente. Mas é precisamente isso que nos faz pensar. Pensar na incalculável capacidade do ser humano e em especial dos moçambicanos, nos quais, aos poucos, vou encontrando defeitos graves de mentalidade e postura perante a vida, mas, ao mesmo tempo, qualidades impressionantes, daquelas que nos infundem uma inveja saudável, daquelas que nos dão esperança sobre o futuro da humanidade. Em verdade, todo o ser humano é bom e mau, corrupto e impoluto, leal e traiçoeiro, certeiro e errante, filantropo e avaro, egoísta e despojado, todos, sem excepção de algum, reunimos estas virtudes e estes defeitos. O que nos diferencia não é, pois, a qualidade, mas antes a quantidade. O pendor daqueles defeitos e daquelas qualidades na nossa conduta define-nos e diz, a nós e aos outros, quem somos afinal. O ser humano é, assim, a maior contradição da história. E isto tem um respingo conclusivo que nos perfura como uma bala impiedosa: em verdade, não há quem seja absolutamente bom e, mais importante, não há quem seja absolutamente mau. Devemos pois ter esperança e continuar a acreditar na humanidade e, em particular, neste país, onde coabita o preguiçoso inveterado e o lutador sem armas, mas vencedor.

Assim termina este capítulo de aprendizagem e conhecimento, desta feita perfumado por uma especialíssima companhia, tão profundamente espiritual e amiga. Da varanda do aeroporto, eu e o Arlindo observamos o avião da LAM atingir a velocidade da descolagem e, num testemunho de maravilhosa engenharia, levantar voo em direcção a Maputo.

Rainbow Nation - 10.11.2006 a 13.11.2006

Através das densas e húmidas nuvens, o pequeno artefacto voador desce titubeantemente em direcção ao aeroporto de Durban. A aterragem é comedidamente tranquila e, mais importante, efectiva.

A primeira gota desprende-se timidamente do extenso e cinzento céu. E como em tudo, há sempre um pioneiro, aquele que pisa o chão da dúvida e da incerteza, vence o medo do desconhecido, avança enquanto os outros apenas observam os seus passos. Não é melhor nem pior, é diferente, o que é muito. Muitas vezes, não é quem mais beneficia da sua audácia, mas fica na História, se isso é consolo. É seguido pelos seus irmãos e irmãs. A gota pronuncia a chuva e o céu amado e providente cai sobre a terra sequiosa. Em breve serão audíveis os coloridos cantares da natureza. E foi assim que a África do Sul nos recebeu, a mim e ao meu pai, com água, para nosso azar, segundo alguns, para nossa sorte, dizem outros.

A meio da manga que liga as zonas de embarque e chegada à parte comum do aeroporto, identifico um senhor sentado, de rosto afilado, óculos de massa, queixo proeminente e povoamento capilar incerto. “O tio está ali!”. Passou um ano e meio desde a última convivência. Nisto dos reencontros e despedidas, é cada um com a sua sensibilidade e, mais do que isso, é cada um com a sua maneira de a expressar. Ele levanta-se e dirige-se a nós, nós estugamos a passada na sua direcção. Entre sorrisos e emoções, lá chegamos aos fortes e fraternos abraços. Não é por acaso que a despedida é tanto mais suportável quanto mais consistente for a esperança no reencontro. Se deixamos de nos ver, ao menos que seja temporariamente, se possível, seja um repente, não pode é ser para sempre. E não foi, desta feita. Haja, e há, claro está, muita alegria nesta reunião.

Avançámos, os três, no carro mais simples e mais económico do mercado, pelas vias mais perfeitas e pelo país mais desenvolvido de África. O alcatrão é liso e extenso, as vedações estão bem colocadas, a estrada é larga e apresenta excelentes condições. Aqui e ali, há provas irrefutáveis de bem-estar avultado. Estamos na Europa desenvolvida. “Isto parece a Suiça.”, ouve-se dentro do carro. E, de facto, nas primeiras impressões retemos colinas imensas pejadas de verde, tudo trabalhado e arranjado. A mão do Homem esteve neste lugar, e o que belo já seria mais belo se tornou. Casas lindíssimas ficam de atalaia a ver-nos passar e nós fazemos a vénia da admiração, apreciando este oásis de prosperidade nesta África deserto de fome. Acabaríamos por chegar a um grandioso e luxuoso centro comercial, graficamente chamado Pavilion. Aí almoçámos e confraternizámos, fizemos das notícias o prato principal. Partilhámos uma reconfortante garrafa de vinho sul-africano. Daí partimos, de espíritos abraçados, e entre contemplações e análises, o meu pai, “Já viste isto? Que país!”, e eu, “De facto, que país!”. Pensamos bem? Em Nampula, na casa dos missionários feita meu lar, vive um padre antigo, analítico e disciplinado, sábio de grande destaque nas línguas bantas. Sentados à mesa de refeição, reparei que ele perscrutava os mistérios da toalha. Pus nele os olhos, com curiosidade. Interrompeu a sua análise, “se olharmos, parecem quadrados, mas se olharmos e observarmos percebemos que são rectângulos.”.

A África do Sul foi, e continua a ser, um país seviciado pelos horrores da diferenciação racial. O território foi tomado pelos ingleses e holandeses (boers) a partir do século XVII em diante. Mais tarde, estes colonizadores envolveram-se em guerras independentistas, resultando do pleito a União Sul-Africana, uma nação independente sob a tutela da coroa britânica, em 1910. Como é do conhecimento geral, os ocupadores das terras africanas estiveram, normalmente, empenhados em pugnar pelos seus benefícios, desvalorizando a promoção humana dos autóctones. O resultado foi a instrumentalização destes ao serviço do bem daqueles. O raciocínio, ao contrário do advogado, ainda hoje, por alguns ilustrados académicos, é simplório e falho de boas intenções. O branco olhou para o preto e observou “Tu és o que fores para mim. Fora disso, és nada”. O racismo da agressividade e da destruição tem sempre na base o magno peso do egoísmo e da avareza. Veja-se, por exemplo, o poderoso interesse económico que esteve por trás do holocausto. Fossem os judeus pobres mentecaptos despojados de riqueza, e a sua religião, história e costumes nunca teriam incomodado alguém. Depois, é bem certo, há aquele racismo mais moderado, do qual todos padecemos um pouco, baseado no preconceito, na incompreensão e intolerância perante a diferença. Mas o mal daí advindo ao mundo seria suportável. E assim, quando cai o véu opaco dissimulante do negrume do espírito, a verdade desnuda e triste revela-se sem escamoteamentos, para nos dizer que boa parte dos grandes crimes da humanidade são motivados pelo verbo ter, em todas as suas possíveis conjugações. No ano de 1910, encetou-se a legalização do apartheid. Foi um chorrilho legiferativo de normas e regulamentos, leis e decretos, directrizes e comandos, tudo com o vil propósito de pôr cada um no seu lugar. Damos 90% da terra aos brancos e prendamos os pretos com o restante. Nós não vamos aos seus lugares e eles não se aproximam dos nossos. Nós ficamos com os meios de produção e reservamos-lhes os solos estéreis. Será melhor que não estudem, até porque não aprendem, e depois nem trabalham nem coisa alguma, é uma desgraça sem estribeiras. Enfim, criem-se dois mundos nesta terra, um da prosperidade e da bonança, outro da miséria e da exclusão. Mas, claro, eles podem desenvolver-se de livre vontade. Nada os impede. Lutem! Não os proibiram de correr, mas cortaram-lhes as pernas. Todavia, os colonos desenvolveram o país. Abriram corredores de alcatrão, edificaram cidades imponentes, fizeram proliferar as universidades e os hospitais, as escolas, os serviços, a indústria e a agricultura. Os embargos internacionais ao regime do apartheid muito contribuíram para o desenvolvimento económico. Se nada me vendem ou dão tenho de me ter com aquilo que há. E havia muito nestas terras. Em 1990, quase cem anos depois, a África do Sul passava a ser, legalmente, de todos os Sul-Africanos. Será necessário, agora, muito trabalho, tolerância, equilíbrio, disciplina e racionalismo para aproveitar tudo isto, para colocar tudo ao serviço de todos.

A propriedade de dimensões reduzidas onde se situa o espaço comboniano é formada por um inacabado rectângulo de três lados fechado por um semicírculo irregular. O complexo habitacional faz paredes-meias com um bairro muito pobre, por aqui chamado township. O sítio escolhido não é sujeição mas opção. Explica-nos o meu tio que assim estão perto das pessoas mais carenciadas. Por tecto, um primeiro edifício, de 10 por 60 metros, composto por tijolos muito rubros sobrepostos com segurança, mas sem exuberância. A sala e alguns quartos. O estilo é claramente britânico, é o rasto da história. Em frente, uma casa ampla, formando um espaço autónomo, onde reside a cozinha, a sala de refeições e mais alguns dormitórios. E, por fim, a igreja, cuja grandeza é mais relativa que absoluta, face à modéstia das restantes construções. Neste lar comboniano, vivem dois padres formadores, um pároco e uma dúzia de jovens dos três grandes continentes, todos aspirantes a missionários.

Aqui, a missão é preparar vidas para a missão. A tarefa é altamente complexa. Educar é empresa de largo fôlego. Isto assim quando se ensina a querer, a ter, a abundância. Imagine-se agora o que será ensinar a abnegação, a privação, o sacrifício…

O meu tio entendeu, há muito, que o mais eficaz veículo de transmissão pedagógica é o exemplo. E assim, neste lar, a restrição e a frugalidade são a regra suprema imposta a todos. Desde a parcimónia na alimentação ao não uso de telemóvel, em tudo se contém, sempre sob o rigoroso critério da essencialidade. Se é estritamente necessário, há, se assim não é, esta casa não conhece o supérfluo. O haver é de todos e o não haver por todos é, desejavelmente, tolerado. É a austeridade auto-imposta que corre nas veias de uma racionalidade aparentemente complexa e peculiar, fundada na evidência de que o treino deve reproduzir, na medida do possível, a realidade. O princípio é, porém, de apreensão fácil. Quantos estão dispostos a desmontar o cavalo e subir para o burro, quando essa manobra não é imposta pelo inexorável curso da vida? E mesmo aqueles que têm, por regra, a albarda em cima do jumento, temem habituar-se aos intermitentes prazeres gozados, por sorte, em cima do palafrém. O meu pai brindou-nos com chouriços do lombo. Há uns tempos a esta parte, ao entardecer, vou à cozinha e convido o muito estimado senhor Alberto, cozinheiro da casa dos missionários, a comer três fatias da iguaria entaladas em pão de água. Bebo uma cerveja pelos dois, pois ele incorre no tenebroso desacerto da abstinência obstinada. Num dos aprazíveis banquetes, interrompendo um daqueles silêncios primorosos por vezes instalados entre pessoas que se querem bem, o senhor Alberto disse-me “João, isto não ‘tá bem. Não pode habituar ao que não é.”, “Ao que não é?”, “Sim, qualquer dia eu quer e depois não tem.” O princípio explica-se nesta singelez e simplicidade. Só não entende quem o não quer.

Durban é uma cidade encantada pelos prazeres da maresia, pois só isto explica que se houvesse estendido até berma do areal extenso, o qual morreu de amores e casou com a translúcida água do Índico. As avenidas largas, os prédios altariços, bonitos jacarandás, alguma sujidade e por aí se fica. Fica, não sem antes se fazer a devida referência aos excêntricos transportes públicos. Carrinhas de 12 lugares artilhadas até às porcas que prendem os pneus. A chapa é a tela de artistas vanguardistas, onde estes inscrevem os mais inimagináveis desenhos. Do interior, estofado a preceito, provém uma música estridente, capaz de atordoar quem se abeira do veículo. Imagine-se o sofrimento dos que vão lá dentro. É costume ver algumas cabeças de fora, quer para se refrescarem quer para escapar à lesão dos tímpanos. Acima de tudo, não há quem não dê por conta da passagem do Chapa… Foram felizes esses momentos. Passeámos e conversámos, estivemos juntos e, no final de tudo, no final da vida, estas recordações e os sorrisos despertados são o grande troféu que levamos para o vazio.

Em 1994, era eleito o primeiro presidente negro da África do Sul. Foi criada de imediato a Comissão Verdade e Reconciliação para julgar os crimes do apartheid. Quem assim o pretendeu veio perante os “juízes” e confessou-se, pediu perdão e voltou para casa. Só do génio de Mandela brotaria um tal primor. Discriminaram-nos, violaram-nos, ofenderam-nos, destruíram-nos, mas nós, agora donos e senhores dos destinos deste capítulo, apenas vos pedimos, com gentileza, que venhais perante nós, mostreis arrependimento, peçais desculpa e o vosso destino será vosso. E os brancos ficaram, continuaram a vida, com mais discrição e menos autoritarismo, no tremendo esforço de se tornarem iguais a estas raças inferiores. Mas a vida é assim. O Homem nunca é aquilo que quer ser e, por isso, raramente demonstra ser aquilo que é. O apartheid legal acabou. Os pretos, os mestiços (coloured) e os indianos podem viver onde puderem. Já não estão normativamente relegados para os guetos onde foram engavetados a bem da pureza das raças. Foram implementadas medidas de discriminação positiva, o black empowerment. Assim, nos concursos para os postos de trabalho, em circunstâncias iguais, os pretos, os coloured e os indianos, por esta ordem, são preferidos aos brancos. É uma discriminação positiva laboral em busca da equidade na distribuição dos recursos. Contudo, a preparação e a riqueza dos brancos não é comparável à dos restantes. Os pretos vieram para a cidade e os brancos foram para os arredores, onde construíram vivendas de luxo e muros enfeitados com arame farpado. Olham de soslaio para os estranhos, constroem locais de lazer acessíveis apenas a gordos molhos de Rand, contratam empresas de segurança, enfim, vivem prisioneiros na sua abundância e no seu passado. O apartheid é, agora, económico, mas não só.

No domingo de manhã, eu e o meu pai fomos com o simpático Pepe, o formador colega do meu tio, a uma missa num bairro que, nos tempos, era coloured. Nele só viviam e só podiam viver mestiços. Esses primos afastados da nossa superioridade, fruto de um tropeção sexual de um dos nossos ou de uma criada violada. Entrámos na igreja. Mais uma vez, a nossa alvura forasteira despertou as atenções. Estarão 100 pessoas nesta casa do senhor, cinco pretos, quatro brancos, entre os quais nós e o presbítero, e 91 mestiços. Não é por mal que nos olham. É por nos estranharem, tão-só. O Pepe discorre sobre aquela idosa que entregou à caridade tudo quanto tinha e de como isso a tornou grande aos olhos de deus. Antes de terminar a homilia, apresenta-nos à comunidade e somos alvejados na vergonha por um entusiástico e agradecido aplauso. Não sei o que terá pensado o meu pai, ou se terá pensado, tal era a emotividade do momento, mas eu, com palavras interiores, agradeci a sorte de estar perante a história. O apartheid continua e continuará por muitos anos. As leis abolicionistas são o começo e não o fim. A consciência, os preconceitos, os costumes e os ressentimentos são muito imunes ao positivismo normativo, mesmo quando com ele se constata, com clareza e evidência, a verdade absoluta de que todos somos iguais.

Os três, no carro mais económico e simples do mercado, nosso fiel transporte, subimos pelas boas estradas de KwaZulu-Natal, província da qual Durban é capital e onde se situa Pietermaritzburg, a cidade hospedeira da casa dos missionários. As rodas rodam vagarosamente, trepando a inclinação acentuada do piso. A chuva e a névoa são nossas parceiras de expedição e poucos deleites permitem aos nossos olhos. Mas de repente, como se tudo estivesse programado, a água contém os seus movimentos por alguns minutos, o nevoeiro faz-se em brisa agradável e à nossa frente surge Drakensberg, uma cordilheira maravilhosa, despertadora de emoções inauditas e de sentimentos ecléticos. Os montes seguem-se às montanhas, um tapete de verde nunca visto estende-se por todo o lado. O horizonte é verdadeiramente infinito. Fico com a clara sensação de que este paraíso não tem fim e pela primeira vez compreendo o significado da tão falada magia das paisagens africanas. Esta experiência sensorial detida ao nível da visão é profundamente arrebatadora, estimula-nos o espírito até ao mais poderoso dos estremecimentos, diz-nos da nossa pequenez. Morre-se hoje, hoje, cem ficam chocados, amanhã, lamentam noventa, ao terceiro dia, choram trinta, ao quarto, lembram-se dez, um ano passou, e desaparecemos, excepto naqueles pouquíssimos corações que nos guardam para o sempre da sua finitude. A nossa relevância é microcomunitária, subjectiva e pouco mais O meu tio pergunta-nos se não vemos Deus nesta paisagem. E, de facto, perante este cenário, difícil é não nos questionarmos sobre a intervenção de uma mão grande e boa na beleza plena deste lugar. Olho, mais uma vez, antes que o nevoeiro regresse e o momento se perca. Daqui, de onde nos pomos, a vida é bela.

No dia seguinte, eu e o meu pai havíamos de ser brindados com horas de espera no aeroporto. O mau tempo ou uma avaria impediu o avião de levantar, e tal era a tenacidade da obstrução que nos instalaram num bom hotel e nos mandaram esperar para outro dia. Noutra circunstância, com outra companhia, teria caído o Carmo e a Trindade, mas desta vez nem por isso. Estamos juntos e, afinal, isso é o importante.

Jantámos num dos vários restaurantes do Hotel. Comida a rodos e para gostos variados. Receitámo-nos mais um dos muito bons vinhos da África do Sul. Refastelámo-nos com avidez. Segundo o adágio, há males que vêm por bem. E assim foi, desta feita. Para além dos saudosos momentos de convivência e confraternização, um último e belo quadro sul-africano haveria de se nos apresentar, para bem das nossas recordações. No restaurante onde jantámos, todos os muitos comensais eram brancos. O escurecimento da tez pairava apenas nos empregados e no gerente, mas o castanho deste era asiático. Contudo, numa mesa perto de nós, um senhor especial, um estrangeiro naquele lugar, uma carta fora do baralho, um negro. As suas mãos, grossas e mal jeitosas, guardam as marcas de uma vida de trabalho. Segura os talheres de forma tosca, muito abaixo. Quando ingere, inclina-se sobre o prato, quase beijando os alimentos. A alface indomável, antes de chegar à cavidade bocal, deambula numa refrega insubordina entre os dentes e os lábios, até que estes vencem a luta e a sugam. Pediu um sumo, bebe-o até à última gota, e a mistura de ar e liquido em ascensão através da palhinha produzem aquele agradável ruído que já valeu a tantas crianças a repreensão dos adultos mais irritadiços e veneradores da etiqueta. Por vezes, desvia os olhos da comida para passar em revista o universo circundante, numa rotação ocular esporádica, célere e envergonhada. Chega a conta. Não sabe lê-la. Vem o gerente e, muito discretamente, tudo lhe explica com delicadeza e elevação. Paga, levanta-se e segue o seu caminho, passo a passo, no trilho da igualdade.

E assim terminou uma visita que nos deu tanto de esteticamente belo como de profundamente educativo. Pressinto em mim e no meu pai uma conclusão que ultrapassa o raio de visão dos nossos olhos. A verdade, extirpada de sofismos e de gargantas labiosas, é que entre os missionários religiosos e laicos, dentro e fora do seu país, entre aqueles que entregaram a vida a uma causa, a uma missão, social ou política, há um restritíssimo grupo de pessoas cuja única felicidade almejada foi a felicidade dos outros. Algo superior parece ter estado com eles e junto daqueles que com eles estiveram. De facto, na vida destes seres humanos, terá havido momentos em que só uma fé ou espiritualidade profundas poderiam garantir a sanidade. Só algo de transcendente e inacessível poderia, nestas condições, suportar estas mulheres e estes homens. Esta estatura e estrutura não se ensinam, antes jazem calmamente nos genes desde a milagrosa fusão nas trompas de Falópio, até que um dia, por magia, despertam, e aí temos um ser humano capaz de mudar um dos infinitos cursos da história. Não obstante, tudo tem um preço: a inviolável probidade e a intocável coerência só vivem no espírito e nas acções de quem está disposto a morrer…

Os motores do avião da British Arways levantam o gigante num estertor poderoso. No chão deixamos um país de lindas e múltiplas culturas, raças e cores, uma criança repleta de inseguranças e contradições que, lentamente, procura levantar-se e caminhar com firmeza em direcção a um novo Sol, lavado e debotado pela chuva imaculada, formando a desejada a Rainbow Nation.