Wednesday, December 19, 2007

O Ângulo do Enfermo - 07.02.2007 a 31.09.2007

Perguntei-me, antes de escrever este texto, se deveria escrevê-lo. No início deste diário, se me recordo com precisão objectiva, era a fonte quem bebia a água. Mas depois o registo tornou-se público, há quem diga que lê, e compreende-se que o autor tenha mais cautelas. Não fosse este um veemente defensor das suas incongruências, incompletudes, defeitos e outras maleitas do espírito. Por isso, pode entender-se o receio de que esta historieta finde no ridículo choro da vítima, mas se isto não é mais do que um pedido de perdão…

Há gente que só vê aquilo em que acredita. Outra casta, só acredita naquilo que vê. Alguns sonhos de olhos abertos ou pálpebras fechadas ao sonho. Um balde de justiça e verdade destila sob o calor próspero do verão sufocado por nuvens. A oftalmologia é ciência de pouca monta para explicar convincentemente este prodígio da cromática, esta fenomenologia estonteante através da qual o branco se convolou em negro, a paz em guerra, a certeza em dúvida. É a fraqueza do espírito e pobreza do coração, que à primeira adversidade se revoltam e exigem recompensa, afirmam sobre pés juntos que não merecem fortuna tão rançosa. Havemos de lamentar a incapacidade de alguns no tocante a compreender a metamorfose do objecto da visão! Não percebem que os contornos e as arestas, as cores e as curvas, as sombras e a claridade, tudo o que a visão alcança depende do ângulo que o espírito ocupa. Alguns perceberão, tarde ou cedo, que os olhos são servos manietados e esculpidos pelo córtex visual. E esses, convencidos de possuírem ciência maior, dirão num suspiro sobranceiro “Se pretendes ser rigoroso, nunca me digas o que está ali, diz-me apenas o que vês ali”.

O despertador irritante sonoriza com vigor o raiar do dia. Mas a noite sonolenta já foi intensamente espertina. Os intestinos corroboraram um presságio assente segundo o qual “Alguma coisa não está bem”. O meteorismo exacerbado é tão irritante como evidente, pois o ruído flamante das vísceras é compassado por uma flatulência sinfónica. Os arrepios num dia de calor. Levanto-me e dirijo-me à sentina para exterminar as incertezas. Conta-se que uma criança pobre, cuja lhaneza não carece de averiguação, terá dito “ Ó mãe, não sei o que se passa, mas estou a mijar pelo cu”. Depois de três ou quatro descargas, chego à mesa do mata-bicho sem apetite e afadigado. Logo os bons amigos me recomendam arinate e fansidar, agressores eficazes das malárias mais recalcitrantes. Seguem-se as análises em laboratório acreditado, que estranhamente negam o diagnóstico tão cabalmente palúdico. Não há razão para alarmes, nem para arriscar. Meia dúzia de pílulas e cama durante dois dias. Até que o corpo se refez parcialmente, o suficiente para regressar à faculdade, às aulas.

As melhoras foram como o Sol do Inverno e a chuva do Verão. Agora, quase a entrar em Março, chegam os enjoos, as náuseas, os pruridos anais, e outros incómodos com os quais o enfermo se não coaduna e dos quais não se gaba. “Toma mais estes catorze comprimidos que isso resolve- -se. Devem ser alguns parasitas que te andam a chatear”. Cumpro a rigor os conselhos de uma irmã, freira e enfermeira, que, segundo se diz, nos tempos de guerra pôs ao serviço de ferimentos e amputações tudo quanto se lhe podia exigir e ainda mais. Quem vem a estes lugares para trabalhar é chamado a ir além do que sabe, a deitar a mão a tudo e a todos, a fazer das tripas coração, a fazer alguma coisa de nada. Certa vez, em Portugal, perguntei a uma senhora de posses modestas o que pretendia ela fazer do meio quilo de petinga que acomodava num saco translúcido. “Vou fazer uma caldeirada para o meu homem!”. A voluntariosa mas franzina e canastreira sardinha, disfarçando os olhos baços, a figadeira decomposta, lá se fez passar por safio e raia, quem sabe por garoupa e cherne, entre batatas, tomate, pimentos e cebolas, até ser caldeirada.

E assim cheguei ao final de Março, entre avalanches nauseabundas, tantas vezes inesperadas. Certa vez, enquanto explicava essa questão pertinente da qualificação em Direito Internacional Privado, “Esperem aqui um pouco, que tenho de ir ali dar um recado a uma senhora”. Decidi então pesar a minha elegância e reparei nos 68 quilos que eram 78 quando aqui cheguei. O bolo só se compõe definitivamente quando, no topo, lhe pomos a cereja. O ser humano razoável, quando atacado por dores e más disposições, percebendo que pouco mal nos pode intrujar quando temos 26 anos, diz “Isto logo passa”. Outros, felizmente uma cómica minoria, interpretam o mais leve padecimento como uma manifestação de doença, algo que merece tratamento. No seio destes, vive uma espécie ainda mais preciosa, assustadoramente grotesca, não fosse a amplitude do cavalheiro, quase quixotesca, que antes de balbuciar “Ai!”já está a abrir a enciclopédica médica para saber o quanto está mal. Ora, esta gente crê que uma dor de barriga é um sintoma de cancro no estômago, a cefaleia, um tumor no cérebro, um braço dormente, por causa da esclerose múltipla, uma arritmia antes da paragem cardio-respiratória. Iniciei este périplo com doze anos, com uma apendicite aguda que nunca tive, e hoje, catorze anos passados, pelo menos durante dois ou três dias, já tive boa parte das doenças fatais conhecidas pela ciência. De modo que, se não se pode pôr um alcoólatra na guarida de uma adega, muito menos se pode rogar paciência a um hipocondríaco agudo que perde 10 quilos em mês e meio.

Decidi ir ao médico. O consultório do respeitado clínico é uma pequena divisória de um laboratório de análises sito numa avenida destacada de Nampula. Consultei-o por 500 Meticais (15 euros), algo perfeitamente inalcançável para um salário mínimo nacional que não ultrapassa os 1200 Meticais. Mas sendo eu tão branco, tão bem posicionado nesta escala patrimonial, não tive nem vi problemas em despender o que a outros faz falta. No sufoco, já não fui tão farto em incendiados discursos sobre a repartição das riquezas, ou então convenci-me de que a solidariedade é bem mais do que um palavreado demagógico como os que envergo tantas vezes. Apalpações e perguntas de diagnóstico, e ali se sentenciou “Isso é uma ameba. Com estes trinta comprimidos, bebidos num copo de água açucarado para a boca não amargar, em breve estará como novo”. Certo homem estava corrosivamente perdido numa montanha elevada. Pretendendo saber como regressava à base, questionou um raro transeunte sobre qual seria o rumo que os seus pés cansados deveriam seguir. Informado, desconfiou do informante, mas seguiu o trajecto sugerido, e quando vacilava por dúvidas fundadas sobre o caminho que trilhava, sempre recordava que a suprema liberdade da escolha só está ao dispor daqueles a quem é oferecida alternativa.

Chegámos a Abril. Depois da proveitosa consulta, saudei esperadas visitas de Portugal. E foi então que entre as desmedidas emoções dos que sacrificaram tempo e dinheiro para estarmos juntos, disparou o alarme “Estás mesmo magro, pá.”, “Devias vir connosco para Portugal.”, “Estás mesmo acabadinho.”, ou prognósticos ainda menos razoáveis e substancialmente mais assustadores. O tormento dos dizeres fatalistas só nos demove quando não estamos a viver o único sonho que tivemos em toda a vida. Mas foram tempos de felicidade inconsiderável. Lembro--me, em certa altura da vida, recordava com frequência a alegria e plenitude do passado, atacado por um saudosismo inato não escolhido nem desejado. E o sofrimento provocado por essa atitude era de tal forma acentuado, que escolhi, antes, certificar-me da felicidade actual. De modo que vivi estes momentos tentando esquecer as maleitas do físico, para aproveitar a palpitante certeza da alma. Em digressão, passámos pela missão do Alua. Uma médica italiana, missionária de alto calibre, empenhada e incansável, aconselhou-me a submissão das minhas gastas e liquefeitas fezes a análises parasitológicas. E foi então que se descobriu um parasita comum nestes lugares. Mais quatro comprimidos, desta feita deglutidos de uma só vez. Todavia, também não foi aqui que o intestino se acalmou, nem o físico se tornou robusto, nem a cura se encontrou. As visitas partiram, mais uma despedida sobre momentos em que a gratidão e a segurança se sobrepôs ao gozo de nos reunirmos.

Até que, alguns dias depois, passados três meses e meio sobre o início da enfermidade, detectei um líquido rubro na esbranquiçada porcelana da sanita, o sangue. Nesta ocasião, fui afectado gravemente por doenças de gravidade imponderável. Comecei por padecer de meningite, passando ao síndrome do cólon irritável, para depois sofrer do síndrome de Crohn, chegando à colite ulcerosa, até que tudo se convolou num avançado e metastaseado tumor do cólon. Perguntaram a um ilustre embaixador como era, enquanto pessoa, a sua lindíssima esposa. Este terá respondido perguntando “Comparada com quem?”. Alguns loucos, considerando-os com esta simplicidade, vêem e têm por real algo que outros não enxergam nem julgam existente. Se é um desvairado aos olhos dos demais, é, na sua óptica, o único lúcido, ou, pelo menos, o escolhido para ter acesso a certo tipo de informação, de perspectiva, de conhecimento. Pouco a pouco, é possível desconsiderar tudo quanto promana de um exterior ignorante, tão néscio e descontraído como a cigarra cantante nas tardes quentes de Setembro. E, assim, o louco afasta-se de tudo quanto o rodeia, isolando-se depois de se certificar que, nitidamente, ninguém pode compreendê- -lo ou acompanhá-lo na sua dimensão da verdade. Ora, muito de quanto é verdadeiro para gentes de honorífico fausto intelectual assenta numa inspiração, a qual não poderia ser demonstrada por um método que resguardasse em si qualquer rasto de científico. E se o método é o caminho do conhecimento, não há gnose sem passos. E saber que do exterior não provenha? E termos por certo aquilo que não vemos nem cheiramos, sentimos ou ouvimos? A tua pele só é macia porque lhe posso tocar? Se é evidente que há loucos e sãos, nenhum mal faz em crermos que tudo quanto embrulhamos na verdade é o espirro de um juízo tão probabilístico quanto relativo. É um excurso esfarrapado e insípido, mas a ele voltaremos um dia, para deitarmos luz a esse mistério profundo resguardado por essa dúvida inatacável, a qual se resolverá no dia em que percebermos se somos num absolutismo relativo, se somos em relatividade absoluta, ou tudo em simultâneo.

Chega a notícia bem aparecida de que a niclosamida, proveniente da França, é o fármaco eficaz para curar a enfermidade. A Elisabeta, médica amiga, concede-me o privilégio raro de aceder ao presumido santo remédio. Com gentileza, o Arlindo, sempre amigo e disponível, cede-me a carrinha para fazer os 400 quilómetros até à missão do Alua. Levo de boleia uma criança belíssima, com a pele negra iluminada por uns nutritivos tempos na companhia das missionárias combonianas. Ficou órfã muito cedo, depois faminta, e foi recolhida pouco antes da morte. Ela está longe da complexa gramática portuguesa e do rico pomar de vocábulos lusos. Cansado do silêncio fatigante da estrada, convido-a a cantar. A sua voz é agradável e infantil, o cantar imaculado e dedicado, a soberania inigualável das crianças pobres e mal amadas. Enquanto ela se deleita em cantares, penso com profundidade “Lá está o intestino novamente às voltas”. E a niclosamida de pouco serviu…

Estamos em meados de Maio. Visito a casa de uma senhora. Jazida no chão térreo da sua palhota, embrulha-se numa capulana debutada pelo uso. Pergunto-lhe por que motivo está naquela prostração aterrante. “Eu tem malária, eu está mal, mesmo”. E, de facto, está. Ela e tudo quanto dela depende, os filhos, os netos, os sobrinhos e outros tantos. A isto acresce que ninguém lhe telefona diariamente de Lisboa para saber como evoluiu a sua débil saúde. Nem tem ao seu dispor cuidados médicos e medicamentosos elementares, no caso de a doença agravar. Na verdade, se morrer, as lágrimas choradas humedecerão a terra, mas não farão despertar o lamento do tenor mais incompetente do planeta. Confesso-me, foi com estranha indiferença, com lamentável repugnância que me afastei da sua enfermidade, temente de que outros males se abatessem sobre o meu, enfastiado com tanta miséria. Afinal, enjoado, atacado por náuseas e palidez repetente, vestido de receios infundados e roupa franca, já não sou tão benemérito, tão comiserado, tão profundamente emotivo e atento.

Aos poucos, a perspectiva sob a qual observo este mundo move-se, envergonhadamente, Eppur si muove!

Dirijo-me ao laboratório para reanalisar fezes, sangue e unira. A senhora insiste para que faça alguns testes a doenças venéreas, pois, na sua opinião, é muito provável que os meus males provenham de algum descuidado comportamento sexual. Insisto que o mal não pode vir daí, mas ela não se conforma. Venço eu, contra a sua desconsolada vontade de me auxiliar. Numa pesquisa mal cuidada e desprovida de rigor descobrem sangue oculto nas fezes. Na minha especializada opinião, confirmam-se irremediavelmente os prognósticos de um achaque que dificilmente ultrapassarei.

Decido visitar outro clínico, recomendado por um aluno interessado. O hospital público disponibiliza aos seus utentes a consulta geral e a especial. Esta última vale 300 Meticais, e dela está economicamente excluída 98% da população. Quando, no início da minha estada em Moçambique, li, no jornal, um impropério a respeito destas consultas, ajuntei-me ao eloquente cronista e vituperei sem piedade este sistema iníquo, em que o dinheiro se sobrepõe à doutrina da igualdade e fraternidade. Apressado, perpasso o labirinto hospitalar até chegar ao modestamente acolhedor departamento das consultas especiais. Faço a minha inscrição no guichet competente. A bem-parecida funcionária interrompe a digitação do trabalho académico para me atender. Agradeço-lha a gentileza. Preenche a minha ficha e, de imediato, cobra as pepitas devidas pela apreciação clínica. Entro no consultório. O médico, cubano, depois de uma conversa longamente intrusiva, de uma apalpação pormenorizada, pergunta-me “Conhece o HIV?”. E de facto, só já me faltava esta. Em Moçambique, estima-se que mais de 16% da população seja portadora do vírus da sida, pelo que a experiência do detective, analisadas as pistas, impeliu-o para o delito mais comum nestas paragens. Recomendou-me então mais um sem horizonte de exames destinados a despistar infecções parasitárias preocupantes.

Quando cheguei a Portugal, tudo não passaria de uma perturbação intestinal de importância reduzida, que um chorrilho de idóneos exames e vastas caixas de comprimidos acabariam por solucionar.

Só se pode sentir sozinho quem já esteve acompanhado. Segundo a regra, quem viu nascer não deverá ver morrer.

Mas são apenas desculpas, as que agora invento, tentando legitimar o egoísmo que me torturou nestes tempos. O medo, infundado talvez, mas alimentado na eternidade das horas de indisposição e de ignorância. Em todo o caso, o que mais me magoa foi a infame rotação do espírito, que, em certas alturas, me convocou para a intolerância, para o esquecimento, para o abandono dos fins e propósitos que me trouxeram junto deste povo. Desculpem-me, pois, por vos ter abandonado, por dá cá aquela palha olvidei o vosso sofrimento, miséria e tristeza. Fiquei e fui ficando, entre tantas dúvidas e receios, mas já não fui tão vosso quanto deveria. Lembro-me que, nesse tempo, dava frequentemente comigo a pensar na morte, na minha e na dos outros, e nunca me recordo de, entre todas estas, ter preferido a minha.

De que servirá morrer por um desconhecido se deus não existir?

Foi assim que descobri o quão distante estive, estou e, quem sabe, estarei do momento perfeito, que idealizo desde cedo, esse minuto sublime em que me desprenderei de mim para te, vos, entregar a minha vida sem reservas, sem argumentação ardilosa e filosófica. Em boa verdade, o desprendimento e a entrega irrestrita pelos outros, negando a própria existência se assim for pedido, não se escreve em compêndios ideológicos de encadernação soberba. Pelo contrário, é simples, irracional, raríssimo e belo, chamam-lhe erradamente coragem, mas trata-se, verdadeiramente, do amor absoluto, e é isso que me falta.