Thursday, October 26, 2006

Reginaldo - 08.10.2006

Por trás da moderadamente bem-parecida Academia Militar, no frontispício da qual brilha um entumecido retrato de Samora Machel, estende-se um vasto bairro de adobe e capim, por vezes zinco, ao sabor das posses.

Outra lição concedida pela observação da pobreza é esta do fosso fundo entre o desprovido do campo e o miserável da cidade. Para os habitantes rústicos, vem uma malária e logo se vê São Pisco preparado para levar dois ou três. Mas há onde cultivar, é, por vezes, possível domesticar as agruras mais selvagens da fome, há, a bem dos sentidos e do espírito, um tranquilizante bucolismo, um suave verdejar, o famigerado pôr de Sol mais belo do mundo. Na cidade, o cimento erecto e o alcatrão estendido não são tão generosos como a milagrosa natureza. Os bairros pobres estão putrefactos e são, em regra, o confortável lar de ratos, de parasitas, de doenças, enfim, das pestes do físico e da moral.

A carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. Depois de ter assistido a mais uma missa “étnica”, o Arlindo perguntou-me “Queres ir ali a casa de uma viúva que estou a apoiar? Tem um filho doente, problemas na casa, etc., e pediu-me ajuda. Vou lá ver se é possível fazer alguma coisa. Queres vir?”. E, feito o prelúdio, a carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. “Bom, é aqui”.

A casa - usando o pincel eufemista – é feita de envelhecidos tijolos de areia encarnada. As folhas de zinco dispostas triangularmente fazem as vezes de um telhado esfarrapado, obstipando com dificuldade a chuva, convidando as farpas sufocantes do calor. As paredes não encerram uma área superior a 25 m2, dividida desigualmente por uma única vez. No interior, o chão cimentado mas irregular é o auge do luxo, ao passo que a estrutura vertical se esboroa e se enche de porosidade, permitindo a invasão imperial de térmites e outros asquerosos comparsas da penúria. O curto terreno onde este lar foi erigido ainda deixou espaço para um ínfimo quintal. Aqui, um desengonçado alpendre cobre a quase inexistente cozinha, acusada apenas por um pote curvilíneo de barro enegrecido, no qual uns parcos grãos de arroz se dilatam, desafiando a frugalidade do alimento. Ao lado, foi erguida uma estrutura paralelipipédica formada por quatro tabiques de capim, tendo sido recortada uma porta irregular num deles. É a latrina. Logo à entrada, o mistério da vida manifesta-se uma vez mais: num charco negro e nauseabundo, uma colónia fétida e repulsiva de insectos alimenta-se do desperdício humano.

Dentro da cozinha, um imberbe, detentor de um passado pouco superior a um ano, acaricia com as gengivas a metade ressequida e retardada de um pão de água, olha-nos transido, estranhando os intrusos. No chão do quintal, três crianças recriam-se com berlindes. O maior, o Abafador, afasta os mais pequenos, não lhes permitindo chegar à cova feita objectivo, nesta expressiva e fiel reprodução da vida.

Deitado numa pequena elevação de cimento que bordeja toda a estrutura da casa, exteriorizando dor e lamento, absorto num frenético resfolegar, cobrindo a sua inocente nudez com uns calções trinchados e fustigados pelo uso, está Reginaldo, o enfermo. No flanco esquerdo do pescoço, um inchaço esférico, da dimensão de uma tangerina em Janeiro, é a causa do padecimento.
Vive com a mãe, três irmãs, três irmãos, dois sobrinhos, dez pessoas, cada um com o seu feitio, se sonhassem, cada um teria os seus, cada um deles postergado à sua insignificante singularidade, mas todos, sem excepção, pobres onde a ideia de pobreza não chega. A casa, hoje precisada de manutenção, foi comprada e oferecida pelo Arlindo, que lhes dá uma mensalidade de 800Mt. (€ 24) para sobreviverem, ou, mais correctamente, para cravarem as unhas encardidas na montanha escorregadia que é esta existência. E não se estranhe a pequenez da doação, em verdade, os recursos têm este grave defeito da escassez, e não é só o mal que se distribui pelas aldeias, havendo justiça, também o bem merece tal sorte. E se o país é rico em alguma coisa é em histórias de pobreza degradante.

Reginaldo estava naquele estado havia duas semanas. Os comprimidos receitados por algum ignaro herdeiro de Hipócrates tinham permitido a proliferação da infecção. As dores tomavam fôlego e cresciam desabridamente, provocando-lhe prostração e languidez. Além do padecimento, havia uma ralação a atormentar Reginaldo. No dia seguinte, faria exames determinantes para passar de classe, e aquele mal-estar era mais uma voraz ameaça para um sucesso escolar já amplamente seviciado pela miséria. Nesta criança de 9 anos, um físico débil e uma saúde incerta coabitam com uma mente conscienciosa bafejada por um inusitado sentido de dever.

Logo ali se trocaram projectos e propostas, pedidos e ordens, súplicas e lembranças, até que o Arlindo consentiu e decidiu que levaríamos Reginaldo ao sinistro e tenebroso Hospital Central de Nampula.

Este estabelecimento de saúde, certamente o melhor da região norte, situa-se numa zona nuclear da cidade. Quando nos aproximamos, percebemos que o edifício se projecta por uma razoavelmente extensa ladeira, dando assim a ideia de uma construção em crescendo. A fachada, dotada de um perfumado aroma colonialista, impressiona positivamente o observador. Segundo me explicou o Arlindo, a arquitectura interior é um exemplo soberano de excelência da construção hospitalar. Foi dado o primado à optimização funcional do edifício, obtendo-se deste modo uma intrincada mas prática rede de rampas, corredores, salas e divisões, tudo ao serviço dessa tão nobre missão que consiste no sublime gesto de curar e dar vida.

O largo da entrada, ainda na zona baixa, é servido por um gigante semicírculo de alcatrão cujo centro é a entrada para as urgências. Assim, os veículos que transportam doentes entram pela abertura esquerda do círculo, param a meio e largam os passageiros, completando posteriormente este circuito curvilíneo até à saída, do lado direito. Enfim, um esplendor modernista do pragmatismo arquitectónico.

Quer por vezes o futuro mostrar-se quando ainda gastamos o tempo presente. A isso se chama presságio, e foi assim que entendi as fétidas lixeiras fabricadas na orla dos muros hospitalares, das quais exalava o agressivo odor da morte, da putrescência, possivelmente expelido por alguns animais sem vida.

Entrámos no Hospital com Reginaldo. Um largo corredor, dividido em dois, triagem agora, salas de tratamento depois, acolhia os pacientes, ficando uma vez mais patente a imagem de uma máquina bem pensada. Na primeira divisão, do lado esquerdo postavam-se três diminutos compartimentos, privados dos olhares mais curiosos por cortinas celestes de pano esgaçado. Supostamente, era ali o lugar da triagem e do encaminhamento. Em oposição estavam quatro filas de cadeiras, nas quais alguns rostos sofridos aguardavam a chamada.

Pagámos a taxa moderadora, 1 metical, três dos nossos cêntimos. Contudo, este parco peditório é como a borrasca que antecede as bátegas. Olhando bem, vejo, logo à entrada, dois homens vestidos de branco, numa agradável conversa, intercalada por leves sorrisos instantaneamente convolados em fartas gargalhadas, enfim, um pasmo de boa disposição e de bem-viver. Eram os enfermeiros responsáveis pela triagem, envolvidos neste alegre tagarelar, enquanto os doentes esperavam, aguardavam, petrificavam, até que o assunto terminasse. Vendem caro aquilo que devem. Entregues ao vício e ao ócio, fogem à obrigação agravando com isso a desgraça alheia, na espera de súplicas e clamores para porem termo à inacção, na qual se incrustam pedaços enormes de sujidade moral e legal. Mas estes, ao contrário de outros que se contentam com venerações e preces, exigem dinheiro a quem nada tem. Se querem a minha atenção, façam o favor de me subornarem, de me pagarem, de me darem o que têm, de outra forma, nada feito. Não se pode generalizar, porque é injusto e inexacto, mas se isto acontece uma vez que seja, já é grave.

Desta sorte, o rosto branco do Arlindo e a sua condição de Padre obviaram aos trâmites costumeiros da peita, “Ó meu irmão, anda cá. Vê aqui este meu filho, se fazes favor”.Feita a triagem em menos de um ápice, ultrapassando esperas e demoras, lá se concluiu que era necessário drenar o pus. Se em Portugal o apadrinhamento é, em regra, a condição do sucesso, a diferença entre viver bem e viver mal, aqui, pode muito belamente ser a diferença entre estar vivo ou estar morto.

Ultrapassado o primeiro obstáculo, tivemos o merecido acesso à segunda divisória do corredor, onde, segundo as normas e os regulamentos, se enceta o verdadeiro processo de cura, ou o paliativo, ou, não excepcionalmente, o degenerativo.

Do lado direito de quem entra, três senhoras e um casal aguardam vez. Do lado esquerdo, deparo com um cenário macabro. Numa maca com as pernas comidas pela ferrugem, está uma senhora a dormir o seu último sono, o da eternidade. À excepção dos pés, e é neles que leio o género do defunto, todo o seu corpo está tapado por um lençol de um falso e esbranquiçado linho, e aguarda, tal como os vivos, mas destarte para que um conhecido ou familiar venha reconhecer o vivo a quem pertenceu aquele nada.

Numa das portas cerradas pode ler-se um aviso: “Este serviço é gratuito. Combata a angariação ilícita”. É preciso acreditar que não há alguém a quem tudo se aproveite e alguém a quem tudo se despreze...

O Arlindo entra na sala de serviço com Reginaldo pela mão. Uma enfermeira, confortavelmente sentada numa cadeira, com as pernas esticadas sobre um banco, olha os invasores num espanto balofo e tosco. “Minha irmã, veja aqui este meu filho. É preciso drenar esta infecção”, “Ah… Pois, mas não temos lâminas aqui nas urgências. Se o Senhor Padre arranjar uma lâmina, talvez se possa fazer alguma coisa”. E lá partimos nós para casa, e lá regressamos nós ao hospital, cada um empunhando a sua lâmina de barbear, vociferando, aviltando, maldizendo este tristíssimo episódio, que nem a miséria das misérias justifica, só o desleixo, a incompetência, a falta de brio, a cretinice, talvez a maior e mais séria das pobrezas, que é aquela que nos assola impiedosamente o espírito, talvez só isso sirva de moldura a este expoente do surrealismo. Contudo, e por vezes o sol caloroso intromete-se no reino da tempestade mais tenebrosa, algum ideólogo audaz tinha ido ao bloco operatório alugar um bisturi, e, finalmente, tudo estava a postos.

“Anestesia? Não, isso não temos. Vamos cortar assim”. Deitado na maca sobre o braço direito, Reginaldo espera a investidura lancinante. Tudo se inicia serenamente. O Arlindo segura a mão da criança, promete-lhe bolos e refrescos quando tudo terminar, enquanto o enfermeiro destacado para a grande empresa inicia a operação. O Arlindo repete as promessas alimentícias incessantemente, pensando, e bem, que, por vezes, antecipar um prazer futuro é a única forma de estancar uma dor presente. Reginaldo cerra os dentes, lança aos meus olhos um estrépito surdo de dor, junta os lábios grossos, e dos seus olhos desprendem-se lágrimas de estoicismo inauditas.

Entretanto, distraio-me com as cavaqueiras circundantes. “Foi um familiar do campo que me pediu para vir aqui. Começou a sentir-se mal, a vomitar, febres altas, esteve assim uns dias, não arranjavam maneira de a trazer aqui, perdeu os sentidos e acabou. E agora pediram-me para vir aqui reconhecê-la”.Talvez aquela senhora fosse um ninho malárico, talvez tivesse cura, mas quanto vale a vida de um pobre?

Tudo terminaria em bem. É certo, nem Reginaldo estava a morrer nem foi colocado perante uma provação nunca antes vista. Todavia, o valor de uma história está muitas vezes no que não nos diz, nas hipóteses sugeridas, está nesta profunda magia de nos mostrar o que não é através daquilo que é. Aqui, é corrente dizer-se que estamos nas mãos de deus. Se a maleita for para deitar por terra, neste lugar, a ciência não é mágica e pode muito pouco. De facto, ou nas mãos de deus ou nas palmas trémulas e viciadas da sorte. Deus ou a sorte, escolha.

Parámos numa pastelaria, e, conforme prometido, foram comprados bolos e os refrescos anestésicos para o enfermo e sua família.

Sentado no banco traseiro da carrinha, Reginaldo, com a lástima e a exclusão estampadas no rosto, contempla laconicamente os movimentos irregulares dos edifícios, das árvores e dos bancos. Esta criança, a quem a fome não deu sofreguidão, mastiga calmamente a massa dourada do bolo e engole serenamente o refresco convalescente, ao mesmo tempo que pela sua face negra e rutilante desliza a última lágrima do padecimento físico ou a primeira das muitas espremidas pelo desventrado coração. E quem diz que o choro dos velhos é a maior das tristezas sensoriais ainda não viu Reginaldo chorar.

A carrinha avança renitente por entre os casebres descorados e desagradáveis. “Bom, estamos de volta”.

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