Tuesday, October 10, 2006

Festa na Comunidade de Gimo, em Nampula - 01.10.2006

São 7 h. e 55m. O Sol africano é particularmente madrugador e, por isso, já está quente e alto quando saímos de casa.

Na carrinha de caixa aberta, eu e o Arlindo atravessamos o portão traseiro da casa que dá acesso à rua. O grupo de animadores da comunidade de Santa Cruz espera-nos junto à porta principal. "Eh, meus filhos! Vamos subir?", "Bom dia, Sr. Padre. Vamos!". E com a agilidade própria dos jovens impolutos, cinco rapazes, com violas e ritmos intravenais, e sete raparigas, trajadas a rigor com capulanas coloridas, pulam para dentro da caixa da carrinha e acomodam-se. O porta-voz abre a mão e dá duas pancadas secas no tejadilho. Podemos seguir.

No caminho, passamos pelo mercado das calamidades, pelos cajueiros e mangueiras, pela vegetação irregular onde despontam regularmente os embondeiros. Enfim, repisamos os caminhos trilhados no dia anterior. Avançamos pela estrada de terra batida, inóspita e inacessível a um automóvel convencional. As crianças que habitam com as famílias as casas solitárias no mato, se sentadas e perdidas em jogos rudimentares de autoria própria, acenam à nossa passagem, "Estou a ver-te, vê-me também!".

Na caixa da carrinha, o grupo de jovens animadores não cessa a cantoria, sempre naquele tão alegre e difundido registo africano.

Depois de trinta minutos de viagem, chegamos à comunidade de Gimo.

Vários grupos de pessoas esperam calmamente o sacerdote, refugiando-se do Sol quente e impiedoso na sombra oferecida pelos cajueiros. Esta disposição gregária é criteriosa e padronizada. Aqui, os anciãos e chefes das várias comunidades presentes. Ali adiante, os jovens, mais à frente, as mamãs. A folhagem de outra árvore acolhe os intermédios, essa gente que já se calça e junta algum dinheiro, que já vai à cidade com frequência, fala português e ocupará no futuro, seguramente, um lugar destacado na respectiva comunidade. Tudo minuciosamente estratificado, sem acasos ou confusões. Cada qual conhece o seu posto e a quem é devida obediência. Salvam-se, como sempre acontece, as crianças, que deambulam desorganizadamente por onde lhes apraz, correndo e pulando, em brincadeiras que não estão ao meu desprovido alcance compreensivo.

A nossa chegada interrompe toda a actividade convivencial. As atenções dirigem-se para os nossos ainda não dados passos, paras as nossas ainda não pensadas decisões.

É o ancião da comunidade de Gimo quem se dirige a nós. Cumprimenta-nos na sua imutável seriedade cordial, na sua pacatez acolhedora, na sua timidez simpática. Elegantemente enfatuado, orgulhosamente metido naquelas calças e naquela camisa de uma cor inexistente, entre o rosa e o lilás, caminhando sem cerimónias nuns refulgentes sapatos bordeaux. "Tudo pronto, ancião?", "Sim, senhor Padre, está tudo preparado".

De entre o povo expectante, há uns quantos que não aguardam as ordens ou permissões e dirigem-se a nós como pombos que caiem com instinto rapino sobre os amarelos e sumarentos grãos de milho. É difícil explicar o que sente um "Jacinto super civilizado" e bem alimentado quando cruza os olhos com uma criança africana subnutrida. Aquele olhar profundo e curioso, tão sereno e observador, tão cruelmente envergonhado e alegre. A barriga proeminente e arredondada, tenazmente forjada pela fome. As peúgas são grãos de poeira que se depositam gentilmente até cobrirem os seus pés, tão delicados e peculiares. Os calções encardidos, as mais das vezes, são calças largueironas e mal ajeitadas. A sujidade das camisolas denuncia a frequência intermitente do uso. Afinal, a imundice é, não raramente, a delatora da pobreza e da miséria. Enfim, é um cenário altamente invulgar, verdadeiramente único, que nos arrebata de ternura, fulmina de vergonha e nos corta o coração como uma lâmina afiada. Foi de longe o maior choque emocional que já experimentei até hoje. A criança africana é, sem margem para contestação, o ser vivo mais belo e complexo que este planeta irregular nos pode oferecer. E nisto faço-me ditador da estética e dos valores, mas é com conhecimento de causa que tomo esta atitude.

Enquanto estes pequenos deuses me observam, um adolescente, contando não mais do que 12 anos, dirige-se a mim com fulgor e entusiasmo, fixando-me com um sorriso rasgado e reluzente. Reconheço-o do dia anterior. É um rapaz a quem tínhamos dado boleia para a cidade. Sorrio também. "A bênção, senhor padre". Ergo a mão direita, flicto os dois últimos dedos, faço o sinal da cruz, "Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Vai em paz, meu filho".

O Arlindo, deitando mão de uma voz viva e determinada, incita todos os convivas a reunirem-se à sua volta. A adesão é geral. O pároco explica o fim e o propósito da cerimónia. Neste dia benze-se pois a nova capela e celebra-se o dia do padroeiro da comunidade de Gimo.

A construção desta nova casa de deus tem, como tudo, a sua história. Houve tempos em que as missas eram celebradas numa improvisada e rectangular estrutura de adobe coberta por faixas de capim. Mas esta pequena comunidade, nada e criada no mato, com não mais do que 70 membros, achou que podia almejar a mais. Juntou-se dinheiro, chamou-se um pedreiro da cidade, houve mote e impulso organizativo, o Arlindo facultou auxílio ideológico e algum dinheiro, o ancião liderou exemplarmente o seu povo, apelando ao trabalho, à ajuda e à união. E desta dinâmica gregária e unidireccional brotou, como num parto esforçado e sofrido, a nova e simples capela da Comunidade de Gimo. Este pequeno edifício, qualitativamente superior a todas as habitações da comunidade, não é apenas um lugar de deus, é antes a prova acabada de que naquele grupo de seres humanos foi colocada a semente da existência comunitária, aquela que se traduz na partilha do que há e do é necessário fazer para que haja.

É este trabalho educativo que admiro profundamente. E os mentores deste crescimento social são, no que me é dado a ver, algumas comunidades missionárias. Em regra, os missionários não se confundem com a população. O nível de vida, a instrução e as exigências são amplamente superiores. Contudo, eles dão parte do seu tempo e da sua vida em prol do crescimento destas gentes. Explicando com mais precisão, não são eles que vivem dentro das comunidades, é antes a sua mensagem de paz, amor, respeito, educação, cultura e liberdade que é lançada como um bálsamo no seio deste povo oprimido pela pobreza e pela exclusão social. Em suma, o povo pobre de Moçambique foi excluído da humanidade, e alguns missionários, humanos de primeira água, chamam o povo de volta, exigem o seu regresso, depositam no ventre desta África acorrentada o sémen da Liberdade.

A capela ocupa cerca de 100 metros quadrados. A única estrutura interior é o altar-mor, encimado por um crucifixo de pau-preto. São simples as verdadeiras moradas de Jesus.

No chão de esteiras, mulheres, homens e crianças ocupam os seus lugares. O Arlindo coloca-se atrás do altar-mor e é ladeado pelos notáveis da celebração, sendo eu, ignorante e deslocado forasteiro, chamado a integrar a alta estirpe do festim.

Gastaria sem proveito o meu tempo se me dedicasse a descrever uma cerimónia religiosa participada por uma comunidade africana do mato. Nem a minha elevada presunção permite tamanha ousadia. Todavia, não seria justo deixar de enunciar, com prejuízo do rigor, duas ou três particularidades.

Os paramentos são adornados com cores e imagens vivas alusivas a este continente. A celebração da missa é propositada e consentidamente intercalada por cânticos religiosos tradicionais, durante os quais o povo louva deus na sua língua, no seu código, no seu coração. Cada cantar abre um corredor central na massa da assistência e algumas jovens, nas quais se entrelaçam luminosas capulanas, bamboleiam, desenham movimentos únicos, são pequenas chamas bruxuleantes que num repente recrudescem formando labaredas gigantes e incontroláveis. Todo o povo canta e bate palmas, e, nestas esparsas parcelas de existência estes alegres reféns da pobreza gozam o prazer da vida. E eu, tão agnóstico, tão tristemente descrente, mas tão admirador da mensagem de Jesus, eu, que vejo nestes ritos apenas um fenómeno sociológico e antropológico, sou tolhido pelo braço extenso e avassalador da emoção, contemplo este espectáculo uma vez mais e cerro os olhos.

A cerimónia continua neste ritmo cintilante. Umas vezes fala-se em português e outras em macua. A tradição cristã é misturada com os ritos nativos, é dada a palavra aos vários líderes, que falam ao povo, tal como Jesus pretendia, uma igreja universal e multicultural, um espaço de amor e tolerância, de respeito e de ajuda.

A celebração aproxima-se do fim e é chegada a reprodução da última ceia nas vestes da eucaristia. Todos, sem excepção, conhecem de cor as palavras que o Senhor proferiu na sua última refeição. É a aculturação do espírito no seu auge. A minha estupefacção medra sem precedentes. Percorro atentamente aqueles rostos lavados em fé e fervor espiritual. Aqueles lábios salientes e preenchidos articulam verbalmente o penúltimo legado do filho do criador. Entre a multidão absorta na prece, pode ouvir-se a uma pequeníssima criança, sentada, de pernas esguias, olhar vazio e barrigo dilatado, "senhor, eu não sou digno que entreis na minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo."

Findados os rituais, foi a vez de se preparar o banquete dos pobres. Alguns quilos de arroz, echima (farinha de trigo cozida) e oito euros de peixe congelado para cento e alguns comensais. Como se tratava de um dia de festa, cada três tiveram direito a um peixe. O povo come e conversa no chão, ocupando as sombras disponíveis. Toda esta azáfama culinária talhada em potes de barro aquecidos por fogueiras improvisadas.

Durante a preparação do almoço, um numeroso grupo de jovens junta-se à sombra de uma árvore. Cantam e dançam sem parar, acompanhados por batuques habilmente sonorizados.

Mais adiante, divirto-me a brincar com as crianças. Apetece-me apertá-las, metê-las no coração e guardá-las para sempre. Mas temo que alguém leve a mal uma apropriação em tão larga escala. Por isso limito-me a passar-lhes a mão no rosto e a dar-lhes o meu mais aberto e genuíno sorriso. Elas olham envergonhadamente para o chão e retribuem o sorriso. O pobre tem este clamoroso defeito: agradece muito o pouco que lhe dão.

Já refeito e tomando consciência de mim, passeio por entre o povo, tentando passar despercebido, mas a minha alvura não me permite a discrição desejada. Procuro usar uma expressão de humildade, de quase servilismo, desejando que não me sintam superior, mostrando-lhes o quão humilde sou, disfarçando a minha hipocrisia, os meus EUR350 de roupa, escondendo a fartura em que vivo desde o primeiro sopro de vida. Sou levemente incomodado por um sentimento indiferenciável, o qual, paulatinamente, toma contornos definidos e uma grandeza esmagadora que me provoca um desconforto maligno e insustentável. Esta pobreza envergonha-me, mostra-me como sou desprezível e egoísta, e é isso que não suporto.

Eu, o Arlindo e dois ou três notáveis somos levados para uma pequena casa de adobe onde nos servem, com a esforçada sumptuosidade dos simples, galinha guisada e assada no forno. É provável que este episódio seja avesso a elucubrações axiológicas. Talvez seja a tradição desta gente, e é-o de facto, este paradoxal hábito de oferecer o melhor que têm aos forasteiros ilustres. Todavia, enquanto me dedico afincadamente a descarnar a pata da galinha cafreal, cruzo o olhar com uma criança subalimentada que brinca na rua e, salve-se isso, ponho termo à refeição.

As 15h. chegam. O grupo de animadores toma o seu lugar na caixa da carrinha e regressamos a Nampula. O Arlindo explica-me a organização hierárquica destas comunidades e o processo de aproximação dos missionários às mesmas. Nesta página, convenço-me de que o Arlindo estima esta gente, e deus sabe o quanto esta gente precisa de gente que olhe por si.

2 Comments:

Blogger triss said...

Um Jacinto "civilizado" não nas serras, mas no mato....
Adorei.

5:09 AM  
Anonymous Anonymous said...

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semelokertes marchimundui

10:16 PM  

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