Tuesday, October 10, 2006

A Viagem - 28.09.2006 e 29.09.2006

As partidas, mesmo quando desejadas, sofrem sempre desta enfermidade inexpugnável que se traduz na separação. E isto agrava-se quando se deposita tanto empenho na criação e na manutenção dos afectos.

É afogado numa saudade adivinhada que parto para uma vida e um mundo desconhecidos. De facto, a circunstância de a UCM não ter definido convenientemente os contornos desta colaboração deixa-me um pouco apreensivo sobre o futuro próximo. Neste pesaroso momento da despedida, liberando-me de restrições jactanciosas, devo pois confessar que também o medo toma o seu lugar no meu espírito. E a verdade é que, sendo-me legítimo chorar o apartamento, aproveito e derramo igualmente lágrimas de temor.

Comove-me a atenção que me foi concedida neste momento de despedida. Uma grande festa, muitos telefonemas e mensagens, uma comitiva no aeroporto, um derradeiro adeus paternal e maternal na porta de embarque, um último beijo de amor mesmo antes de entrar no autocarro que me levaria ao avião. Não esqueço os que se lembraram de mim nesta hora que, inusitadamente, me pareceu tão decisiva. É o preço a pagar por uma vida altamente convencional e rigidamente programada. Ao mínimo desvio, somos levados a pensar que poucos estarão a viver uma situação tão peculiar e a submeter-se a tanto risco como nós.

Em suma, sofri e sofro gravemente com a separação, mas consola-me esta perspectiva de realizar um sonho, esse arroubo divinal da realização que, embora não provoque o ocaso da dor, da saudade e do temor, amaina eficazmente os temporais do espírito e as dúvidas da mente.

No avião, arrumaram-me num lugar aprazível. No centro, longe da janela e no enfiamento da asa. Sempre que entro num avião, levo comigo a alta probabilidade de uma tragédia. Tendo em conta as estatísticas e o estádio tecnológico, esta convicção é aceitável. "Pois..., de facto...., não, da TAP nunca caiu nenhum. Ah, não, na Madeira, sim, acho que aí houve um que viu pista a mais e só parou no mar, mas é um caso isolado. Viajas na TAP, é?", "Sim, na TAP... É quase certinho que não sobrevivo. Mas tem de ser. Um tipo também não pode ficar no mesmo sítio toda a vida".

Acolhe-me um triângulo humano burlesco.

Ao meu lado esquerdo, uma portuguesa emigrada na África do Sul. O sobrepeso, a gargalhada farta e balofa, as unhas pintadas com a exactidão com que a chuva-molha-toldos lava as ruas da cidade, a simpatia, um inglês mais lusitano que o galo de Barcelos e o rigor das contas públicas, enfim, tudo isto junto a fazer prova mais plena que a certidão de nascimento. Esta respeitável senhora lê e exibe um pequeno livro, nomeado "Wanted Angel" por quem o deu à estampa, ou então por algum editor que achou "Hot Springs" pouco apelativo. Elaine Fox, a autora deste repasto literário, deu o seu assentimento a uma capa berrantemente colorida, na qual dois jovens e desnudados corpos se entrelaçam num doce e tórrido bailado. Adivinho, com justeza, um daqueles romances semi-eróticos, nos quais se diz tudo menos o essencial, mete-se a chave à porta mas não se roda a fechadura. Mas é precipitado o meu juízo. Olho de soslaio para o texto e leio com deleite "oh god! Oh god!"

No vértice superior do triângulo pontifica uma rapariga aloirada e esbranquiçada, da boca da qual sai um descomplexado português moçambicano. A insónia persistente traz-lhe uma considerável preocupação. Bebeu um copo de vinho ao jantar, outro antes e outro depois. Por fim, colocou sobre tudo uma manta calorosa de conhaque. Sempre que solicita uma bebida à hospedeira, por vergonha do alheio ou por convicção autónoma, adianta "...Sabe?, é que se não bebo, não consigo dormir...". E assim, atestando e reenchendo, escorropichando copo atrás de copo, logrou etilizar-se a preceito. Ri, a voz está mais colocada, guincha, mete conversa com os restantes passageiros, enfim, uma maravilha de se ver. Mas não dorme.

A completar este triângulo, do meu lado direito, habita um senhor com o tempo estampado na face. Ri e dorme numa alternância tão frenética que me faz temer pela sua sanidade mental. Há pouco, o comissário de bordo, interessado em dar-lhe a papelada alfandegária, que haveria de preencher e entregar à chegada, perguntou-lhe para onde ia. O vetusto cavalheiro perguntou estremunhado "Ãh?" e depois de escutar novamente a questão respondeu sorridente "Vou para onde me levarem". O comissário de bordo, atónito com tamanha disponibilidade, entregou a este homem sem destino os dois formulários, o da África do Sul e o de Moçambique, os quais foram recebidos com a indiferença de quem, desinteressadamente, não compreende o que está a acontecer.

A escala em Maputo permitiu-me uma visita perfunctória a esta cidade. As avenidas largas, os resquícios do estilo arquitectónico luso, a degradação e as esporádicas habitações de luxo permitem-me concluir, de forma provisória, que Maputo é uma cidade na qual se perseguiu e destruiu o colonialismo e onde grassa a desigualdade. Voltarei em breve para confirmar esta primeira impressão.

Às 20h. e 23m. do dia 29 de Setembro, mais de 24 horas passadas sobre a partida, aterro em Nampula. Cansado e angustiado, recebo com alegria o encontro com o Arlindo que, com a simpatia de sempre, me recebe no Aeroporto.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Tou contigo neco! Nao sabia da tua partida até hoje. Força. Gato

5:28 AM  
Blogger triss said...

Espero que corra tudo bem João, e principalmente que seja uma experiência inesquecível!

Depois de vivermos fora de Portugal, os nossos horizontes são outros, a compreensão e a percepção desta aldeia global também :-)

beijinhos

4:51 AM  
Anonymous Anonymous said...

Tudo de bom para ti João!

E que a experiência que estás a

viver, fique sempre no teu coração.

M.Melo

10:11 AM  

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