Saturday, September 01, 2007

Acito-te Até que a Morte nos Separe! - 06.05.2007

Voltou a Gimo. Não é um qualquer regresso. É o retorno ao primeiro sítio onde experimentou este negro contentamento. Alvitra-se que não devemos revir aos sítios onde fomos felizes. Talvez tema jogar às costas o fardo de contemplar o passado e lamentar que tudo tenha transitado num ápice. Porventura não quer assimilar que, às migalhas, acorda do sonho lindo que isto foi. A contragosto enfrenta a verdade que o atormenta sem com isso se ralar: o tempo, o supremo e precioso bem, passa num alvoroço de tal monta que não é gente para perceber o pouco que já foi e o quase-nada que lhe resta. Mas regressou. Reviu a vereda ladeada de cajueiros e mangueiras, as leiras de mandioca e amendoim, as crianças lívidas e amistosas, enfim, junto à partida revive os momentos da chegada e tolha-se a saliva no goto, irrita-se a pele desgastada, perturbam-se as movimentos e altera-se a termodinâmica fisiológica: foi feliz aqui e voltou!

É dia festivo em Gimo, com baptizados e casamentos. Engalana-se a comunidade para colher a fatiota formalista dos passos que, pacientemente, se foram convolando na essência da vida. Pertencer à grande família e construí-la, dar-lhe os seus elementos. Não admira pois que o ambiente seja um saudável rodopio em torno dos preparativos. Recebem-nos com a simpatia costumeira. O ancião, já prendido de amigo, dirige-se a mim e festeja a minha presença. Apresenta-me à sua esposa, aquela que outrora tinha anunciado a fuga do lar, se o oleado não surgisse rapidamente. A senhora é de bom trato e agradável, o que me leva a calcular que o nosso líder tenha exagerado quando lhe imputou tanto interesseirismo. Se calha pintou o quadro ainda mais sombrio para me condoer e impelir a dar-lhe os duzentos meticais para cobrir a casa. Não o censuro. Quantas vezes, desejando sermos perante os outros, teremos dito o que não era, teremos soltado um ai superior à dor, um lamento acima do sofrimento, um choro de falsa água, só para que os espectadores negligentes se lembrassem que existimos? O fosso entre o ser e o parecer é de tal ordem… A convivência é um grande teatro, com deixas e pontos, palco e pano, trajes e maquilhagens, canastrões e grandes artistas, tal como nas mais belas peças.

Os membros do clã apresentam-se em grande pompa. As farpelas mais bem tecidas, tudo a preceito, conforme exige a circunstância. Alguns solicitaram a confissão antes da cerimónia. É a praxe. Talvez pretendam rabiscar um interior puro antes de encetarem mais uma celebração de exaltação.

As galinhas que haveríamos de almoçar ainda se passeavam pela terra batida. Entre correrias assustadas, debicam pacientemente grãos de terra, pesquisando cientificamente, distinguindo o nutriente do mineral, auscultando com investidas matematicamente dimensionadas o coração da crusta castanha. A galinha. Azafamada e medrosa, faz vénias para comer. Inclina a cabeça e aguça o bico, inflama-se quando perigam os pintos. No genuflexório do tanque pousa os joelhos gastos e lava roupa, nunca existiu alguém tão grande. O ajudante do cozinheiro, um jovem ágil, corre atrás de duas galinhas. Apanha-as e, sem malvadez ou requinte, irreflectidamente, sem pesar ou prazer, num gesto tão mecânico com este que manda o oxigénio invadir os pulmões, corta-lhes o pescoço com um golpe unitário. Em breve, o corpo rijo e musculado das aves misturar-se-á com a cebola e o óleo, será o tempo das reacções químicas e galvanização das moléculas, e, concomitantemente, a farinha cozerá no pote de barro enegrecido pelo uso até ser echima.

Na modesta capela de Gimo, inaugurada no dia 1 de Outubro do ano passado, onde estive e me encantei pela primeira vez com este povo, começam os baptizados. Nos primórdios, este simbolismo aquífero representava a conversão, a inclusão, o reconhecimento da presença, da existência do Deus. Mas nas geografias desenvolvidas quase tudo embotou numa festa de família, pretexto de comeretes e bebedeiras, precedida por uma cerimónia estéril durante a qual se asperge um anjo. Tem sido tal a romaria que já se deu o caso de num festim inundado de gente virtuosa só ter lugar junto de deus a criança que ainda não foi baptizada. Contudo, aqui, na longínqua e esquecida comunidade de Gimo, o baptismo é um acontecimento verdadeiramente belo. Por isso vão recém-nascidos e crianças, adolescentes e jovens, adultos e velhos, alguns com tempo e outros a tempo de a passo largo atravessarem a soleira da porta do cristianismo. Reparo num jovem que se prepara para sentir a água benzida escorrer-lhe da nuca para o lobo frontal. Há algo nele que me sugere um quadro mal pintado, mas às vistas primordiais não descortino o que seja. Percebo, então. O humilde e novo cristão enverga um pijama colorido como fato de cerimónia. Afinal, na estética atravancada e embaçada deste rapaz, as calças confortáveis e o casaco de botões castanhos, com gola de bico, este pijama de meia estação adquirido nas calamidades cumpre com rigor as vezes de uma veste faustosa. A verdade é que o azul-escuro salpicado de elefantes de tromba eriçada lhe caía a matar. Numa cidade do hemisfério Norte, certo jovem entrou na igreja trajando um pijama e logo lhe recomendaram psicólogos, anti-depressivos e fármacos para a confusão. No hemisfério Sul, outro jovem submeteu-se ao baptismo com finura em cadência trajando um honroso pijama de elefantes, e logo se alegou na festança que o Alcides Mukuvulo vinha muito merecido até!
Aos baptizados seguiram-se os casamentos, a união com a pessoa escolhida ou recomendada, quem sabe imposta. Mas se a vida não é tantas vezes um conjunto de simbolismos que mais não explicam do que a nossa cândida intenção de manifestar quem não somos, desejosos que nos comprem por aquilo que gostaríamos de ser…

Os seis futuros casais dispõem-se taciturnos junto ao altar, menino à frente da menina, mas sem se fitarem nos olhos. Dir-se-ia que toda aquela parafernália de adereços e rituais os envergonham. Não se pode ser modesto quando toca a exprimir alegria no momento da mais unificadora das uniões. Ou pode? Pode Silvério Sabonete, quando perguntado “Aceitas como tua mulher Eulália Norberto até que a morte vos separe?”, responder cabisbaixo, num sopro sumido, “Sim aceito.”, e manter o olhar perdido no granulado desorganizado do tosco chão sagrado? Se for comandado pelo interior e não pelo exterior, talvez lhe permitamos essa desfaçatez, talvez reconheçamos que a suma virtude é a verdade e não a prudência. Esta simplicidade envergonhada é um magnífico ímpeto para quem procura perceber em que parte da nossa vida está a essência e quanto de nós podemos rotular de sobejo.

Passou-se a cerimónia e o ancião da comunidade solicitou-me que o fotografasse em poses reais com a sua senhora. “Aqui, junto ao carro, irmão!” Deliram quando lhes mostro o resultado milagroso da tecnologia no ecrã da máquina digital. No íntimo de quem não dispõe de um espelho, qual será o impacto da própria imagem registada para a posteridade? Nem se justifica a tentativa vã de percebermos qual seja, basta-nos tirar proveito da surpresa dos outros, que é algo em que somos exímios, quer para o bem quer para o mal.

Sentámo-nos para almoçar na palhota onde servem as refeições dos convidados e residentes ilustres. Desta feita, ao contrário da primeira vez, não me senti afectado pelas crianças esquálidas que circundavam o faminto casebre. Comi a galinha com refreio, mas por hábito, e não por imposição conscienciosa. Esta pobreza já não me dói como antigamente. As tragédias deixam de o ser quando não podem ser nossas ou quando já as contemplámos vezes sem conta, ora, o que fará quando estes dois requisitos se preenchem cumulativamente…

Antes da despedida, dirijo banalidades a um antigo membro da comunidade. “A festa estava muito boa! Devo dar-lhes os parabéns. E o senhor, já casou?”, “Eu já casou, mas se calhar para o ano vai fazer matrimónio.” Espantado com a precisão conceptual, tentei esclarecer, “Mas o senhor já é casado, ou não?”, “Sim, já é, mas também quer fazer matrimónio.”, “Bom, veja lá se isso não é um passo muito grande.” Ele espreitou discretamente o meu rosto e tornou a cabeça, que meneou na vertical, manifestando concordância e reflexão, para depois questionar, “E você?”, “Eu já fiz matrimónio, mas ainda não casei…”

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Caro João
Tenho a honra de ser o primeiro a deixar um comentário. Que é muito simples, uma palavra:Espectacular!

Só quem lá esteve compreende a profundidade do texto! Um bom final. Só tens que corrigir o "aceito-te" para não nos obrigar a divagar e a elucubrações inúteis.
Aquele abraço.

12:34 PM  
Anonymous Anonymous said...

Muito bom como sempre ou, talvez, ainda melhor, que a experiência vai aguçando a arte... este dom tem que ser alimentado, por isso ficamos à espera de mais.
Não posso deixar de referir que se me eriçaram os pêlos na última parte...

1:19 AM  

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