Sunday, May 27, 2007

O Corvo Engaiolado ou o Pardal Livre e as Irmãs da Caridade - 21.04.2007 e 11.05.2007

Somos o que fazemos é expressão usada e refeita, alterada e ornamentada, dita com compostura e aprumo quando pretendemos demonstrar onde chega a nossa argúcia, tanta e tão desenvolvida, que já compreendemos que há mais e menos na língua do que no nosso coração. Reclamamos, pois, a corporificação, bem dizendo, a exteriorização do espírito, do seu lado dourado e do negro, exigimos, assim, algo ao alcance da dimensão sensorial, que nos permita avaliar os demais, dizermos da sua bondade e da sua maldade. Porém, o percurso do juízo moral sério inicia-se no exterior, onde se fundamenta, apetrecha de imagens, cheiros e ruídos, de sabores e impressões. Mas depois caminha para o interior, onde descobre que afinal não somos o que fazemos, somos também o que gostaríamos de ter feito, de não ter feito, somos, surpreendentemente, as nossas boas intenções, muito embora, diz quem sabe, o inferno seja farto nesta espécie. A labiríntica reflexão, que só por imodéstia pode conhecer avanços conclusivos, leva-nos a ver que não somos um, mas vários. Perguntas-te, por vezes, quem és, afinal. Pergunta-te, antes, quantos és, afinal. Apenas o fraccionamento da existência, distribuída pelas circunstâncias, pela cronologia, pelos humores, permitirá apreender quem são aqueles que somos. Em verdade, só as crianças de tenra idade se aproximam da unidade, pois são especiais e superiores, só o morto a atinge, pois é nada.

As irmãs da caridade foram fundadas pela famigerada e beatificada Agnes Gonxha Bojaxhiu, conhecida mundialmente por Madre Teresa de Calcutá. Senhora de convicções comuns, comiseração para com a pobreza e indignação perante a injustiça social, destacou-se pela raríssima opção de vida, traduzida na ajuda, não aos pobres, mas aos mais pobres dos pobres. Crianças estritamente abandonadas, idosos absolutamente desamparados, doentes de HIV e tuberculose em fase terminal. Quanto mais desgraçado, mais irremediável, mais justificada a sua intervenção. Somou a tanta disponibilidade um voto de pobreza extremista. O hábito, umas sandálias, um prato de esmalte, um jogo de lençóis, e pouco mais. Nem saberei que dizer de tal escolha, pois, em primeiro pensamento, se o copo cai, parte-se e toda a água se entorna, mais valerá a vassoura e a esponja, do que segurar uma gota num dos estilhaços. E isto é evidente para quem observa o relógio através da razoabilidade economicista do custo-benefício, mas não se passa o mesmo para quem pressente profundamente numa vontade divina ininteligível, se perscrutada pelos cânones racionais humanos. Seja como for, a sua descendência leu junto à letra os seus desígnios e cumpre-os a preceito. E foi esta prole que me desafiou a ir à penitenciária de Nampula projectar um filme sobre a vida de Jesus.

Julgo que o mestre de Petersburgo terá pensado que se podia conhecer uma sociedade olhando para as suas cadeias. Tendo sido Dostoievky o maior escritor de todos os tempos, a ponto de me apetecer dizer que antes dele se tentou escrever e depois nunca mais se conseguiu, até me amedronto de discordar. A premissa tem-me tirado horas de sono, todavia, parafraseando um querido irmão em plena prova oral na faculdade, “Sabe, reflecti muito sobre esse assunto, mas não cheguei a qualquer conclusão, não me ocorre mesmo nada que possa dizer sobre essa questão.”

Bem sei que a escolha do filme se fez mais por critérios evangelizadores, do que por decisões baseadas no ajuste do fato a quem o veste. Todavia, não se pode negar que a vida de Jesus dava um filme, uma peça de teatro, um livro. Pois se nela há de tudo quanto faz bem ao imaginário humano, às nossas perfídias escondidas e ao sumo desejo de que, no fim, tudo acabe bem. Intriga, inveja, ódio, perseguição, nascimentos, mortes, amizade, fraternidade, para alguns, amor. O herói é bonito, boa pessoa, inteligente, complexo, eloquente, defende os pobres e os oprimidos. A isto se juntam milagres e ressurreição. Parecem preenchidos os requisitos para uma história magnífica, que agradará à maior parte e fará alguns mudarem para sempre o rumo da sua vida.

A prisão fica a cerca de 30 Km da cidade. O espaço carcerário está sitiado por uma rede alta e electrificada. Assemelha-se a uma escola técnica. Alguns barracões abandonados do lado esquerdo, onde teriam sido as oficinas, e do lado direito, colocados lado a lado, surgem cinco ou seis pavilhões estreitos e longos, as celas. Entramos no corredor central do território e paramos o jipe junto a uns guardas que, sentados, tagarelam sobre assuntos banais. Logo se viu que a ideia de beneficiar todos os delinquentes com a sessão cinematográfica seria impraticável. Seleccionaram alguns. Entrámos no pavilhão para montar a maquinaria. Um corredor estreito, talvez vinte celas de cada lado. Salvos os cheiros desagradáveis e indiferenciados, nada me devem se gabar com frugalidade as condições do lugar. Células individuais, cada uma com a sua latrina, o seu catre, nada de indigno, tendo em conta a função da casa e a estirpe do morador. Os assassinos, ladrões, violadores, e nem é bom saber quanto mais, iam entrando vagarosamente e acomodavam-se como podiam no chão. Senti um moderado e inesperado receio quando me vi rodeado por tanto malfeitor. Fiz um esquiço de sorriso e esforcei-me por saudar abertamente quem passava. Alguns surpreendidos e acanhados, outros mais abertos e risonhos, todos retribuíam os bons dias. Emaranhado nos fios do computador, projector e colunas, tentando direccionar correctamente a luz para a tela, nem me apercebi do que se estaria a passar na retaguarda. Mas depois de tudo preparado, virei-me para traz e não vi mais do que uma massa humana, negra, duzentas e muitas pessoas assentadas, enlatadas, fitando-me fixamente, esperando o começo do grande espectáculo. Não se faz esperar quem disso faz vida.

A fita rodou sem parar e aqueles 400 e muitos olhos não desfaleceram, não quebrantaram quando o calor era já insuportável. A primeira manifestação sucedeu no momento em que Maria comunicou a José que estava grávida e este se revoltou, desconfiando da fidelidade da sua futura consorte. Entre risos de troça, lá se foi ouvindo “É pá, eli tem razão. Eli ainda não fez nada com ela!”. Quando Jesus nasceu, estes corações distorcidos voltaram a emergir. Entre vivas e algumas palmas, um deles bradou alto e bom som “Este é que nos diz a verdade!”, e os outros sorriram. Mais adiante, durante a crucificação, insurgiram-se alguns, mostrando a sua indignação pela condenação, flagelação e execução de um homem inocente.

Deslumbrado, gozei aquelas figuras. Homens de muitas idades, mestiços e negros, gordos e magros, culpados e inocentes, arrependidos e indiferentes, cada qual a viver no presente as consequências da conduta passada ou a incompetência do sistema judicial. Suponho que alguns terão tido medo, terão chorado, terão, na sua vida, sido capazes de mostrar a nobreza do seu coração. Mas um dia a circunstância surge, a necessidade aperta, o cérebro desregula-se por via de um processo químico ignorado e incontrolado. A formação já não seria muita, nada perde quem nada tem, a mão levanta-se, apropria-se, prime o gatilho, desfere a catanada. Entra-se neste ritmo e depois, como acontece com todos os vícios, é o cabo dos trabalhos para voltarmos ao hábito.

Tudo visto e revisto, chegou a hora de regressar ao ponto de partida, às celas, talvez com a recordação de um momento diferente, bem passado, quem sabe, mais à frente, análise de conceitos, ideias e princípios, cogitações férteis sobre o manuseamento do leme e o destino da expedição. Os presos ajudam-me, gentilmente, a arrumar o material que os serviu. Agradecem-me, e eu a eles, por estas duas horas de sonho e aprendizagem. Teremos tido, gostaria de acreditar, neste enredo de musselina ao qual chamam convivência, segundos raros durante os quais dois homens se entreolharam sem se julgarem.

Um dos encarcerados disse a uma das calcutas “Eu vai mudar a minha vida, irimã!”. No caminho de volta, a estimada freira contava esse episódio com um travo esperançoso e crédulo na laringe. Pensei, com ironia irreflectida, “…O máximo que te poderá acontecer é mudares de cela, se te portares mal…”.

Mas cada um acredita no que quer.

Permaneço refém de uma imagem de infância que, manda a honestidade dizer, não sei se é facto histórico e consumado ou o fruto de uma imaginação sedenta de simbolismos e orientações, sinais transcendentais, enfim, o resultado de uma desesperante e inesgotável vontade de perceber quem somos e onde estamos. Reza a minha memória o seguinte. Há cerca de vinte anos, fui com a minha avó paterna a uma mercearia. À saída, ter-me-ei oferecido para carregar um dos sacos das compras. No caminho, intrigado com estas questões da omnipotência e bondade divinas, perguntei “Ó avó, se Deus é tão forte, por que é que ele não mata o diabo?”. A minha avó, terá reflectido um pouco sobre a questão e respondeu “Porque o diabo também faz coisas boas. Agora, foi ele que te mandou levares esse saco.” Quem tem ouvidos, ouça, quem puder compreender, compreenda.

Olhar para elas já seria recompensa suficiente, quanto mais estar junto ao maior expoente da existência humana, tocar-lhes no rosto, sorrir-lhes fielmente e pegá-las ao colo. A única desilusão que não tive nesta caminhada foi a criança africana, a mais pobre e serena do mundo, amigável e medrosa. Vê-los descalços, roupa encardida, olhos negros e fundos, a viva curiosidade...

As crianças, e estas em especial, são percentagem considerável da beleza da Terra. A sua superioridade é de tal forma evidente que não contempla discussão. Percebo agora Heraclito, percebo agora aquele que me disse, um dia, durante uma festa, “Sabes, de toda esta gente, aquele com quem mais me identifico é a criança de 3 anos”. Perpassou no ilustre filósofo e neste simplório confidente o desejo de se aproveitarem um pouco da grandeza dos petizes. Surpreendem-me, pois, esses que arreiam nas crianças com o pretexto de assim as educarem, quando facilmente se encontram adultos mais merecedores de sova e menos sensíveis às orientações e às palavras reparadoras. A menos que alguém tenha conhecido menino ou menina que merecesse mais as palmadas que lhe dão do que quem lhas dá.

Foi assim que, alegremente, recebi o convite das irmãs da caridade para projectar o filme sobre a vida de Jesus a 300 crianças de idades entre os 5 e os 12 anos.

Entrei no recinto onde se encontra o salão da paróquia e já lá estava, ansiosa, a multidão de querubins. Olharam-me com temor, sem a descrição que os impuros e argutos investem em tudo quanto fazem, miraram-me candidamente, algumas sorriram, outras recolheram o rosto com vergonha, outras, ainda, pasmaram-se apenas.

Tudo preparado. Iniciámos a projecção do filme. Passados alguns instantes, notei que a muitos muito do filme escapava. Para crianças que apenas dominam a língua macua, está mais acessível um coco agarrado à sua mãe de 4 metros, do que um filme falado em inglês e legendado em português. Pelo que me vi compelido a interromper periodicamente a viva locomoção imagética para lhes explicar o que viam e quanto diziam aquela senhora, este romano, aqueloutro carpinteiro. Crianças de má sorte! Estão numa escarpa e querem passar para outra, além do desfiladeiro, e a ponte que lhes servem é de estaca comida pelo bicho, paus transviados, enfim, um comunicador deficiente no geral, em particular com as crianças, o que dizer das que pouco português conhecem. Mas a verdade é que escutaram atentamente a minha voz, a explicação, as sugestões, os prelúdios, os prognósticos, enfim, a sua grandiosidade é tal que não olhavam para o lado, com receio de me desconsiderarem.

Valeu que o filme era rico em imagens e música, mas comedido em palavras. Quando Jesus nasceu, um “Ahhh!” geral propagou-se pela sala, os sorrisos espalharam-se por todos os rostos. Mais adiante, a Paixão. Jesus está deitado sobre um tronco delgado que o atravessa de um braço ao outro. O centurião ordena aos súbditos que façam o prego perfurar a carne das mãos boas deste homem, e a cada estocada, estas meninas e estes meninos fecham os olhos, escondem a face, aturdidos de terror. Uma rapariguinha entra num choro convulsivo. Não me consigo conter e o riso que tentava trancar viola a fechadura, sai à porta e mostra-se, deixando as crianças espantadas. Não saberão, talvez, que me rio de felicidade por poder observá-las e estar perto delas.

A Beleza é escura, pequena, move-se lentamente, tem um andar privado e senta-se ao nosso colo se lhe conquistarmos a confiança. Depois do primeiro impacto, mantém uma expressão estranha, que nem é de felicidade nem de tristeza, pareceria reflexiva, não fosse a idade. Aninha-se, apenas, recebe as carícias que lhe dão e não exigiu, demora-se naquela pureza tranquila somente ao alcance de quem está em paz absoluta…

1 Comments:

Blogger IM said...

Consigo sentir a beleza das crianças através das tuas palavras...

6:41 AM  

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