Thursday, October 26, 2006

Os Primeiros Contactos com a Faculdade de Direito da Universidade Católica - 02.10.2006 a 13.10.2006

A pueril Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique encontrou poiso agradável e prometedor naquele que em tempos coloniais foi o Colégio Vasco da Gama, propriedade da diocese, regido por instituições religiosas, uma instituição de referência no ensino. É pois um edifício pejado de portugalidade. As paredes são altas, as salas estão bem dimensionadas, há anfiteatro, há biblioteca, há sala de informática, a estrutura goza de boa saúde, tudo visto, é um sítio onde o trabalho pode ser frutífero, assim esbracejem e se multipliquem os parcos ramos da árvore.

Os recursos materiais não abundam. Com propinas cifradas entre os 500 e os 1.500 USD/ano, mas com um número reduzido de estudantes, parece ser árdua a empresa de erigir uma próspera e bem servida instituição de ensino superior.

A biblioteca é um pequeno e agradável espaço no qual pouco mais de 1000 obras servem o ávido intelecto de alguns e o doce cumprimento da obrigação da maioria. Se tivermos em conta que parte esmagadora da população estudantil está tão perto de poder adquirir um manual como o ermo e glacial Plutão está do ígneo e portentoso astro solar, vemos com clareza o quão essencial é este depositário de sapiência.

É neste sítio que passo a maior parte do meu tempo. No dia 02.10.2006, “Talvez fosse bom atribuírem-me um gabinete”, “Sim, sim, vou providenciar”. No dia 13.10.2006, “Seria mesmo bom ter um gabinete”, “Sim, sim, de segunda-feira não passa, isso é certo”. Protesto e barafusto, mas sorrio por dentro, pois a festa é da paz e da tranquilidade. De facto, não passou de segunda-feira, e posso, com justiça, apregoar dizeres laudatórios sobre o meu gabinete: grande, arejado, com uma belíssima vista, deitada suavemente sobre uma fileira de coqueiros que correm para a Serra da Mesa.

Sem mergulhar em inférteis e incautas generalizações, não estarei a exagerar se disser que parte significativa do Ordenamento Jurídico Moçambicano é um antiquário do Direito Português. Os códigos nucleares, a legislação estruturante do funcionamento judicial do país… Enfim, continua viçosa uma vasta plantação de Decretos e Leis, Portarias e Regulamentos, que não foi ceifada pelo processo de descolonização, que se não desfez nem logrou regressar à procedência numa insegura e indesejada ponte aérea. Os cultores da história recente do Direito português poderão, com proveito, concretizar o velho sonho de H.G. Wells e fazer uma viagem no tempo da jurisdicidade. Neste recanto do planeta, os idos e ilustres mestres do Direito português, por vezes esquecidos nas prateleiras das nossas modernas bibliotecas, encontram uma renovada vida, um último sopro, vestem pela vez derradeira o honroso e prezado traje da referência intelectual.

O povo moçambicano tem o dom do acolhimento, um especial cumprimento que nos envolve e faz sentir em casa. É a luz do sorriso, o dos simples, que se esparge, banha e lava a alma. E assim, as recepções são em geral calorosas, amistosas, daquelas que nos fazem sentir em casa. Ao invés, não é apetecível a reputação com que os congéneres portugueses acarinham o estudante da África lusófona. Uma complacência risonha para com uma congénita ortografia bamba e uma gramática falha de rectidão. Uma indulgência simpática perante uma inalterável profundidade científica suspensa à superfície do mar do conhecimento. Porém, é precipitado e erróneo este nosso, meu, juízo, esta rotulagem diminutiva que fazemos.

Quando pensamos na pobreza africana, a primeira imagem que nos arrasa é a da criança esquálida, quase esqueleto, prostrada em posição fetal num imenso deserto lavrado por estrias, à espera da bênção da morte, enquanto um abutre, espelhando uma inefável indiferença, aguarda tranquilamente que a desigualdade, essa dotada cozinheira, termine a confecção do seu repasto. Mas a pobreza ultrapassa este cenário chocante. O pobre deve a sua condição à exploração, à indiferença e à destruição alheias, mas também à sua falta de capacidade de explorar e desbravar, de se interessar e conhecer, de fundear e construir. Ora, num país pobre, tudo é subaproveitado, a começar pela inteligência. E assim, desenganando-me, concluo verdadeiramente que o estado cultural e intelectual não é congénito e inalterável, mas sim conjectural e mutável.

Os rigorosos e bem definidos contornos da verdade são muitas vezes destorcidos pelo imediatismo em que descansamos, como se os “ques” pudessem dispensar os “porquês”, assim, como se a água pudesse desprezar a fonte. Na boca de alguns o fenótipo do vício é a virtude, mas no espírito de outros o vício aparente é a virtude em progressão.

Em suma, a verdade é que a circunstância onde se insere o estudante de um país africano subdesenvolvido é profundamente distinta da nossa, chegando a roçar, aos olhos de um europeu, as franjas delirantes do surrealismo.

Vejamos o caso de Afonso, que têm de fictício o nome que lhe dou e de verídico as histórias que ouvi. Encetou a aventura estudantil com 8 anos, numa escola pública, na qual, uma professora voluntariosa, com a 6ª classe concluída, lecciona um português de ortografia bamba e uma gramática falha de rectidão, bem como uma matemática de números travessos.

E foi andando e andando, sempre assistido por docentes que resgatam mais valor na sua dedicação do que na sua preparação. Conto a história por este lado honroso, para não mergulharmos na corrupção e na promiscuidade que amiúde desponta no ensino secundário, onde as notas e as passagens valem meticais e outros serviços não venais. Segundo um recentíssimo inquérito, quatro em cada dez raparigas do ensino secundário já foram vítimas de assédio sexual pelos professores.

O nosso Afonso sempre chegou à escola às 7h. Muitas vezes calcorreou extensos caminhos até pôr o pé nos caducos estabelecimentos de ensino que o viram crescer para o conhecimento. Tudo isto com a bênção de um rigoroso jejum, de fazer inveja ao mais crente entre os crentes na virtude do sacrifício. Às 12h., comia um papo-seco com manteiga ou simples, conforme a vontade do pecúlio. As suas pequenas e renitentes células só receberiam o revigorante beijo dos nutrientes às 18h., quando este tenaz estudante comesse uma bola de echima mergulhada num saboroso caril de folhas e raízes.

E assim, pouco a pouco, com mais ou menos respeito pelas regras, o nosso Afonso atingiu o ensino superior, beneficiando de uma bolsa ou do apoio de alguma instituição. Vive na cidade. Encontrou um anexo de moradia, numa rua central. O apêndice era antes a arrecadação dos Senhores, mas agora, estes elásticos 7m2 fazem o quarto de dormir, a sala de estudo, o escritório, a sala de estar, o salão, a sala de jogos, a sala de fumo e a biblioteca deste jovem Afonso. Paga 20 euros pela arrecadação e sobram-lhe 30 para as refeições de todo o mês. Por isso, e para não prejudicar os hábitos digestivos, mantém a mesma dieta de sempre.

Perguntei-lhe, por necessidade laboral que me atormentava, onde podia eu comprar códigos da legislação moçambicana. “Códigos? Aqui em Nampula? Mas aqui não há nada”. E mesmo assim, ultrapassando os muros e as barreiras que se erigem sem dó, vai fazendo o seu cursinho, vai chegando a Sr. Dr.

Nem todos os estudantes moçambicanos são Afonsos, mas não exagerarei se disser que pelo menos 60% dos licenciandos deste país estão familiarizados, total ou parcialmente, intermitente ou eternamente, com o quotidiano afonsino.

Certo homem, destituído de ciência agrícola, jogou num solo saciado e fertilíssimo sementes de qualidade sofrível e viu a sua terra colorir-se de árvores pejadas de frutos deleitosos que atravancaram o seu mirrado bucho. Outro homem, mestre inimitável da arte do cultivo, colocou a mais seleccionada e profícua das sementes no deserto seco e estéril. Definhou na vã espera de que o valioso complexo embrionário vegetal soltasse o recalcitrante e poderoso murmúrio de vida.

Mas há, aqui e ali, em Moçambique e em Portugal e por todo o mundo, sementes que, desafiando esta inexorável lei, germinam e crescem ultrapassando os destinos predeterminados, e eu, plantado nas providentes margens de um Nilo, tantas vezes aquém do que devia, sento-me, aprecio o momento e colho o exemplo.

Por isso, quando um aluno mais expedito me perguntou se eu tinha vindo para passear e ensinar, fui obrigado a pensar nos meu desígnios, na nossa frágil capacidade de pôr a mão e remexer o curso da vida, tal é a infinidade do que escapa ao nosso mais vigoroso intento volitivo, fui obrigado a reflectir sobre tudo isso e acabei por sorrir apenas, convencido, porém, de que vim para trabalhar e aprender.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre."

Vinicius de Moraes

Solitários somos nós que ficámos...

Inês Mota

2:55 AM  

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