Thursday, October 26, 2006

Um Cibernauta em Moçambique - 02.10.2006 e 13.10.2006

A mais moçambicana das palavras portuguesas é “flexível”. Isto assim em tão larga escala que o seu uso já violentou todas as iniciais regras da semântica, atribuindo-lhe uma magnitude polissémica de abrangência universal. Afinal, tudo o que não é mau é flexível, tudo pode ser assim ou pode ser assado, se corre razoavelmente, é flexível. Portanto, flexível é a adjectivação da positividade, agora, o seu exacto significado, isso não sei! “O exame era fácil?”, “Era flexível”.

Bom, nem a maior indefinição linguística da história poderia arredar-nos do caminho da perscrutação. Pelo visto e, ouve isto, ser flexível é ser maleável, é ser bom, é ser descontraído, é ser parco de regras, é ser conformado, é ser submisso, é dançar com a barriga ao estalo, é, enfim, viver despreocupado, sem programar. Aos olhos de um estrangeiro recém-chegado para umas prazenteiras férias, esta flexibilidade é encantadora. Mas quando se começa a gostar e a admirar este povo, tanta flexibilidade causa certo prurido, depois irritação e a seguir intolerância. Com efeito, do outro lado desta flexibilidade, deste conformismo, desta submissão, desta indiferença, deste deixa andar, está a miséria, a pobreza extrema, as barrigas dilatadas, as crianças de rua, está um dos países mais pobres do mundo, que deve muito do seu mal ao que lhe fizeram e fazem e outro tanto ao que por si não fez nem faz.

Se há regra sem excepção é essa que nos diz dos lugares medianos frequentados pela virtude.

Nesta terra, tudo é programado ao mais ínfimo e detalhado pormenor. Há muitas reuniões. Desfruta-se incomensuravelmente do acto de reunir. E dão nomes pomposos a cada encontro: “Alto convénio trimestral para a implementação, coordenação e reorganização do plano hídrico da região nordeste de Nampula”; “Suma reunião para a definição, concretização e divulgação da metodologia pedagógica adoptada pela província de Nampula”. Podia, sem grande esforço, encher páginas e páginas destes garbosos epítetos, capazes de atafulhar de soberba a mais humilde das reuniões. Todavia, para além da inchada sonoridade, pouco resta, tal é a frequente inconsequência desta profusão de convenções. O plano, para alguns, é um instrumento indispensável ao rigor e ao sucesso, mas para outros é tão-só um grotesco expediente para embuçar a inércia com uma cinética estéril.

Assim, quando alguém diz “isto vai ser assim”, ou, “vamos combinar assado”, pode ser assado ou assim, mas, seja como for, “num tem problema”, o povo é sereno e, sobretudo, perturbadoramente Flexível.

A programação, o aprazamento e o acordo desempenham, na organização deste quotidiano, o mesmo e nobre papel que, nos enterros, é oferecido à viola. E nisto dou por mim nas malhas intrincadas do exagero e da caricatura, mas esta é tão-só a hiperbolizada acutilância crítica que se forja no seio terno e por vezes injusto da benquerença.

No dia seguinte à chegada a Africa, quero logo sentir-me na Europa, no mundo conectado e em permanente convívio. “Posso ir à Internet, Arlindo?”, “Claro, mas estamos com problemas na linha, se calhar não consegues ligação. Aqui, é tudo intermitente, umas vezes funciona bem e outras nem por isso. Vai-te habituando”. Bom, não morrerei por viver uns parcos dias no isolamento informático.

Entro na Faculdade e dirijo-me à sala de informática. Estou feliz por consultar o e-mail. Cheguei há três dias e ainda não atingi o mundo elevado e superior das tecnologias, do imediatismo, da impaciência. “Olá, Willy, tudo bem? Posso utilizar um computador para ir à Internet?”, “Xi, não vai dar, estamos com um problema no servidor e não temos ligação há quatro dias”. E eis-me brâmane em exercícios de domínio da emotividade.

Em conversa com o Sr. Alberto, ilustre e excelente cozinheiro da casa dos missionários, do qual havemos de falar um dia, adepto fervoroso do FCP e grande fã do futebol português, “Agora, ando triste. A antena da RDP avariou e não posso ouvir os relatos. Pode estar assim mais de um mês. Ainda por cima perdi o calendário e agora não sei quais são os jogos”, “Não se preocupe, eu arranjo-lhe já um calendário. Amanhã vou a um café com Internet e trago-lhe isso”. Quem conta com os sapatos do defunto arrisca-se a morrer descalço.

E finalmente acedo à Internet nos serviços da Teledata. “Gostaria de imprimir um documento, é possível?”. A jovem empregada, autora da lamentável opção de misturar uma belíssima tez acastanhada com desfigurados caracóis dourados, “Está em que computador? Ah, pois, esse não dá, é o único. Leve uma disquete, grave o documento e traga-o que eu imprimo-o aqui no meu”... “A disquete que me deu não funciona, tem outra?”, “Claro, aqui está”... “Esta também não funciona”, “Tem uma flash?”, “Sim”, “Então tente com a flash”... “O computador não aceita a flash”, “Ah…, estranho, deve ser o único”. E o Sr. Alberto, tão cioso do seu futebol, tão empenhado em acompanhar passo a passo o caminhar vitorioso do seu FCP, terá de aguardar mais uns dias.

«Bom, isto não é vida! Preciso de um serviço de Internet disponível para os meus caprichos cibernautas». Durante a viagem, quando já me enfastiavam todos os livros, acabei por folhear uma revista da LAM, onde li que a Vodacom disponibilizava um serviço de Internet através do telemóvel. Ora, lamentando este desencontro doloroso com as telecomunicações, decido investir e compro um cabo USB (€15!) para fazer as ligações necessárias. “Dispositivo desconhecido”. «Ainda bem que estou em Nampula, terei facilidade em resolver o problema». Entro numa pequena loja benzida “Clínica dos Computadores” por alguma mente metafórica, e o aspecto claro e arrumadinho do estabelecimento renova a esperança e rejuvenesce as expectativas. “Bom dia. Como está?”. Sentada numa aprumada secretária, a agradável e delicada jovem informática, “Bem, não sei do seu lado”. “Tenho um problema com o meu computador. Quero ligar-me à Internet através do telemóvel, mas recebo a indicação de que o dispositivo é desconhecido. Podiam ajudar-me?”, “Não sei do que está a falar, lamento”, “Não sabe, mas diz aqui que vocês são uma clínica de computadores!”, “Pois, mas não conheço essa tecnologia. Tenho pena”, “Muito obrigado, então”. Mais tarde, a falha desta ligação telemóvel/computador veio a revelar-se no primeiro e, para variar, a inaptidão estava no meu material.

Dias passaram, passou-se tempo onde o tempo parou, até que entrei na Faculdade, dirigi-me, como todos os dias, à sala de informática, e, como sempre, num rumorejo desalentado e exasperado, “Bom dia, Willy. Então, já temos Intenet?”, “Sim”, “E que tal”, “Está muito flexível”.

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