Tuesday, October 10, 2006

Respirar os Primeiros Ares de Nampula - 30.09.2006

Nampula é a terceira cidade do país. Situada no Norte, a 250 Km do Índico, perto da Ilha de Moçambique e do peculiar porto de Nacala. Restam ainda muitas vivendas coloniais, que se dispõem na margem das largas estradas e avenidas, onde cajueiros, árvores­-da-borracha, embondeiros e outras emprestam o verde da vida à letargia do cimento. Hoje fustigada por elevados índices de degradação, Nampula terá sido, na era colonial, um maravilhoso paraíso, um local único para os brancos oriundos da metrópole. Adiante, haverei de reservar tempo para conceder a este lugar a atenção merecida.

Não dormia desde as 9h. de quinta-feira, dia 28, de modo que não curei de respeitar a sirene disciplinadora do despertador e dormi até às 11h. Depois de breves arrumações, chegou o Arlindo. Almoçámos e propôs-me "Queres ir até uma comunidade ali no mato? Amanhã faremos lá a bênção da nova capela e estamos a preparar a festa. Então, queres ir?". Eu já tinha aceite quando ele terminou o primeiro "queres ir", mas, por educação, só dei o assentimento depois do onde e porquê. "Claro que sim, vamos embora".

Saímos de casa. Dois senhores de meia-idade aguardam-nos à porta. É o ancião da comunidade de Gimo, a tal que inaugura a capela, e um ajudante. "Como é, meus irmãos? Vamos comprar as coisas para amanhã?", "Vamos, Sr. Padre".

Eu e o Arlindo entrámos para a carrinha e os dois festeiros subiram para caixa. Numa enorme estrada perpendicular àquela onde se situa a casa dos Missionários Combonianos, encontrámos algum comércio de rua. Parámos no Peixe da Mamã, onde comprámos uma barra de peixe miúdo congelado que custou 270.000 Meticais (EUR8). Mais adiante, noutro estabelecimento comercial de lona e estaca, aprovisionámo-nos de arroz e óleo. E assim se comprou o necessário para confeccionar o almoço de mais de 100 pessoas. Os Meticais, cerca de EUR15, saíram do bolso do Arlindo. Não compreendi o critério da procedência. Só mais tarde percebi que era o da necessidade. De facto, aquele dinheiro representava um ónus pesado para a comunidade de Gimo, de forma que o Sr. Padre, gentilmente, suportou os gastos.

Seguimos na mesma estrada em direcção ao exterior da cidade, ao mato, à densa florestação que rodeia a cidade de Nampula. Á medida que nos aproximávamos do fim do alcatrão, duas fileiras quase intermináveis de tendas escoltavam os carros que passavam. Eis o Mercado das Calamidades. Este imperdível espaço comercial deve o seu nome a um processo transaccional muito peculiar. Como é consabido, o hemisfério norte, satisfeito e aliviado por ajudar os irmãos sulistas, organiza campanhas de recolha e doação de roupa em desuso. No início, este altruísmo era a resposta a uma tragédia, provocada pela guerra ou por qualquer catástrofe natural. Ou seja, era a reacção do povo bem sucedido às Calamidades que assolavam os desventurados. Uma vez que esta gente vive permanentemente em calamidade, algum benemérito compreendeu que a intermitência das doações prejudicava a procura, e estas campanhas entraram na vida quotidiana das urbes desenvolvidas. E assim, as roupas dos ricos chegam com frequência às mãos dos pobres distantes. Mas esta transferência não obedece às leis da economia. Há aqui um processo em que todos ganham. Primeiramente, o doador que dá alivia o coração, convence-se da sua bondade e decide compensar-se. Entra num pronto-a-vestir sumptuoso e gasta, gasta, gasta. Destarte, ganhou o europeu no alívio da alma e no prazer da aquisição, ganharam os vendedores de roupa, os industriais e trabalhadores têxteis dos países em vias de desenvolvimento, onde são produzidas aquelas roupas. Nisto, os trapos atingem os países subdesenvolvidos em enormes contentores. Aqui, as roupas são vendidas a um distribuidor, que fornece os grossistas e estes os retalhistas e, por fim, a mercadoria atinge o Mercado das Calamidades. O preço é muito atractivo e, em boa verdade, esta é a única fatiota ao alcance desta gente. Ou seja, desafiando as leis do mercado, todos ganham. Mas este paradoxo é alimentado e suportado por um postulado arrepiante: o lixo dos ricos é o ouro dos pobres.

A população de jovens vendedores recosta-se preguiçosamente em cadeiras ou no chão. Acenam a quem passa. Se venderem, óptimo, se não, "num tem problema". É assim este povo, descontraído, apático, reverente, humilde.

Prosseguimos em direcção ao mato, até entrarmos numa estrada de terra batida, uma picada, onde apenas sobreviveria um veículo todo-o-terreno. Lá ao fundo, erguem-se as modestas montanhas que formam uma paliçada natural à volta de Nampula.

A vegetação é agreste e virgem, inculta, salvo algumas machambas dispersas aqui e ali. Também aqui abundam os cajueiros, as mangueiras, os embondeiros e outras. O verde da vegetação e o castanho-escarlate da terra dominam totalmente o espectro cromático. Estamos verdadeiramente no campo. Era nestas zonas que, na altura da ocupação portuguesa, os autóctones habitavam.

Encontramos algumas palhotas, onde habitam famílias numerosas. A taxa de mortalidade infantil é elevada, mas, em compensação, as mulheres começam a procriar com 14 ou 15 anos e têm mais de 7 ou 8 filhos. Moçambique é o país das crianças. Se pensarmos que, na Europa, as mulheres têm o primeiro filho, em média, aos 29 anos, e raramente passam das duas crias, podemos intuir com facilidade, também neste capítulo, o enorme fosso cultural que nos separa.

Estas casas de mato não têm, em princípio, divisões. São quatro paredes de tijolo de adobe cobertas por capim. Todos comem, descansam e dormem no mesmo espaço. Por vezes, as famílias incluem não só os membros nucleares, mas também sogras e sogros, tias, crianças órfãs da sida, da guerra e da malária. Tem razão pois o Arlindo quando me interpela revoltado "Qual é a hipótese de pudor e de moral desta gente? Que hipótese têm eles de fugir à promiscuidade?".

Chegamos à comunidade de Gimo. Dois grupos de crianças e outro de adultos encontram-se sentados no chão, à sombra de algumas mangueiras, escutando as palavras evangelizadoras dos catequistas da comunidade. De bíblia na mão, socorrendo-se esporadicamente da Palavra revelada, estes novos mensageiros propagam a fé, expõem a Verdade. A evangelização é, como se adivinha, trabalho dos missionários, que formam elementos da comunidade para depois os lançarem nas engrenagens de deus. O ateu convicto, sentado no sofá, irado com a religião, aquele indivíduo que invoca a Santa Inquisição para criticar a igreja actual, fará pouco deste trabalho, alegando tratar-se de um desperdício, um massacre ideológico. Todavia, é eticamente profundo o conteúdo das palavras de Jesus e parte da mensagem apela a uma especial organização social. A auto-anulação proclamada por Jesus é, se tarefa de um só homem, a morte certa, a destruição do seu autor. Todavia, enquanto atitude universal e generalizada, é o fim da opressão, da guerra, da exploração, do abuso, e, desta forma, é o começo da verdadeira liberdade, da realização humana, da salvação. E eu, cada vez mais descrente, mais distante da fé, vejo medrar o meu entusiasmo pela teoria moral e ética de Jesus. É o chamamento para uma Revolução calada e pacífica, do espírito, operada a partir do interior de cada qual, através de uma gigantesca inundação de bondade e de amor. E este trajo revolucionário serve a todos, crentes e não crentes, letrados e ignaros, desgraçados e prósperos. E assim sendo, este trabalho de evangelização, se adaptado às mentalidades receptoras, se respeitador das tradições existentes, é, a meu ver, uma pedra preciosa neste rochedo feito estéril pela fome, pela pobreza, pelo analfabetismo, pela opressão e pela exclusão.

Entramos na capela. Enquanto o Arlindo e os responsáveis pela comunidade trocam ideias sobre a festa, tento cativar uma criança com dois anos mal feitos. Bato quase silenciosamente no jambé e olho para ela à espera de uma reacção. Fixa-me, ri-se e, paulatinamente, junta-se a mim, tomando de imediato as rédeas do comando musical. Sentei-me para ficarmos ao mesmo nível e ali nos quedámos, cada um batendo à sua vez, sorrindo um para o outro, e tive, pela primeira vez desde a minha chegada, um momento de plena paz.

"Ó meu irmão, já viste a tua filha? Com um branco estranho, ãh, toda divertida e quê, pôxa, é raro...", "É, Sr. Padre, é verdade, é raro", "É a tua mais velha?", "Não, Sr. Padre, é a primeira".

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