Sunday, May 27, 2007

O Corvo Engaiolado ou o Pardal Livre e as Irmãs da Caridade - 21.04.2007 e 11.05.2007

Somos o que fazemos é expressão usada e refeita, alterada e ornamentada, dita com compostura e aprumo quando pretendemos demonstrar onde chega a nossa argúcia, tanta e tão desenvolvida, que já compreendemos que há mais e menos na língua do que no nosso coração. Reclamamos, pois, a corporificação, bem dizendo, a exteriorização do espírito, do seu lado dourado e do negro, exigimos, assim, algo ao alcance da dimensão sensorial, que nos permita avaliar os demais, dizermos da sua bondade e da sua maldade. Porém, o percurso do juízo moral sério inicia-se no exterior, onde se fundamenta, apetrecha de imagens, cheiros e ruídos, de sabores e impressões. Mas depois caminha para o interior, onde descobre que afinal não somos o que fazemos, somos também o que gostaríamos de ter feito, de não ter feito, somos, surpreendentemente, as nossas boas intenções, muito embora, diz quem sabe, o inferno seja farto nesta espécie. A labiríntica reflexão, que só por imodéstia pode conhecer avanços conclusivos, leva-nos a ver que não somos um, mas vários. Perguntas-te, por vezes, quem és, afinal. Pergunta-te, antes, quantos és, afinal. Apenas o fraccionamento da existência, distribuída pelas circunstâncias, pela cronologia, pelos humores, permitirá apreender quem são aqueles que somos. Em verdade, só as crianças de tenra idade se aproximam da unidade, pois são especiais e superiores, só o morto a atinge, pois é nada.

As irmãs da caridade foram fundadas pela famigerada e beatificada Agnes Gonxha Bojaxhiu, conhecida mundialmente por Madre Teresa de Calcutá. Senhora de convicções comuns, comiseração para com a pobreza e indignação perante a injustiça social, destacou-se pela raríssima opção de vida, traduzida na ajuda, não aos pobres, mas aos mais pobres dos pobres. Crianças estritamente abandonadas, idosos absolutamente desamparados, doentes de HIV e tuberculose em fase terminal. Quanto mais desgraçado, mais irremediável, mais justificada a sua intervenção. Somou a tanta disponibilidade um voto de pobreza extremista. O hábito, umas sandálias, um prato de esmalte, um jogo de lençóis, e pouco mais. Nem saberei que dizer de tal escolha, pois, em primeiro pensamento, se o copo cai, parte-se e toda a água se entorna, mais valerá a vassoura e a esponja, do que segurar uma gota num dos estilhaços. E isto é evidente para quem observa o relógio através da razoabilidade economicista do custo-benefício, mas não se passa o mesmo para quem pressente profundamente numa vontade divina ininteligível, se perscrutada pelos cânones racionais humanos. Seja como for, a sua descendência leu junto à letra os seus desígnios e cumpre-os a preceito. E foi esta prole que me desafiou a ir à penitenciária de Nampula projectar um filme sobre a vida de Jesus.

Julgo que o mestre de Petersburgo terá pensado que se podia conhecer uma sociedade olhando para as suas cadeias. Tendo sido Dostoievky o maior escritor de todos os tempos, a ponto de me apetecer dizer que antes dele se tentou escrever e depois nunca mais se conseguiu, até me amedronto de discordar. A premissa tem-me tirado horas de sono, todavia, parafraseando um querido irmão em plena prova oral na faculdade, “Sabe, reflecti muito sobre esse assunto, mas não cheguei a qualquer conclusão, não me ocorre mesmo nada que possa dizer sobre essa questão.”

Bem sei que a escolha do filme se fez mais por critérios evangelizadores, do que por decisões baseadas no ajuste do fato a quem o veste. Todavia, não se pode negar que a vida de Jesus dava um filme, uma peça de teatro, um livro. Pois se nela há de tudo quanto faz bem ao imaginário humano, às nossas perfídias escondidas e ao sumo desejo de que, no fim, tudo acabe bem. Intriga, inveja, ódio, perseguição, nascimentos, mortes, amizade, fraternidade, para alguns, amor. O herói é bonito, boa pessoa, inteligente, complexo, eloquente, defende os pobres e os oprimidos. A isto se juntam milagres e ressurreição. Parecem preenchidos os requisitos para uma história magnífica, que agradará à maior parte e fará alguns mudarem para sempre o rumo da sua vida.

A prisão fica a cerca de 30 Km da cidade. O espaço carcerário está sitiado por uma rede alta e electrificada. Assemelha-se a uma escola técnica. Alguns barracões abandonados do lado esquerdo, onde teriam sido as oficinas, e do lado direito, colocados lado a lado, surgem cinco ou seis pavilhões estreitos e longos, as celas. Entramos no corredor central do território e paramos o jipe junto a uns guardas que, sentados, tagarelam sobre assuntos banais. Logo se viu que a ideia de beneficiar todos os delinquentes com a sessão cinematográfica seria impraticável. Seleccionaram alguns. Entrámos no pavilhão para montar a maquinaria. Um corredor estreito, talvez vinte celas de cada lado. Salvos os cheiros desagradáveis e indiferenciados, nada me devem se gabar com frugalidade as condições do lugar. Células individuais, cada uma com a sua latrina, o seu catre, nada de indigno, tendo em conta a função da casa e a estirpe do morador. Os assassinos, ladrões, violadores, e nem é bom saber quanto mais, iam entrando vagarosamente e acomodavam-se como podiam no chão. Senti um moderado e inesperado receio quando me vi rodeado por tanto malfeitor. Fiz um esquiço de sorriso e esforcei-me por saudar abertamente quem passava. Alguns surpreendidos e acanhados, outros mais abertos e risonhos, todos retribuíam os bons dias. Emaranhado nos fios do computador, projector e colunas, tentando direccionar correctamente a luz para a tela, nem me apercebi do que se estaria a passar na retaguarda. Mas depois de tudo preparado, virei-me para traz e não vi mais do que uma massa humana, negra, duzentas e muitas pessoas assentadas, enlatadas, fitando-me fixamente, esperando o começo do grande espectáculo. Não se faz esperar quem disso faz vida.

A fita rodou sem parar e aqueles 400 e muitos olhos não desfaleceram, não quebrantaram quando o calor era já insuportável. A primeira manifestação sucedeu no momento em que Maria comunicou a José que estava grávida e este se revoltou, desconfiando da fidelidade da sua futura consorte. Entre risos de troça, lá se foi ouvindo “É pá, eli tem razão. Eli ainda não fez nada com ela!”. Quando Jesus nasceu, estes corações distorcidos voltaram a emergir. Entre vivas e algumas palmas, um deles bradou alto e bom som “Este é que nos diz a verdade!”, e os outros sorriram. Mais adiante, durante a crucificação, insurgiram-se alguns, mostrando a sua indignação pela condenação, flagelação e execução de um homem inocente.

Deslumbrado, gozei aquelas figuras. Homens de muitas idades, mestiços e negros, gordos e magros, culpados e inocentes, arrependidos e indiferentes, cada qual a viver no presente as consequências da conduta passada ou a incompetência do sistema judicial. Suponho que alguns terão tido medo, terão chorado, terão, na sua vida, sido capazes de mostrar a nobreza do seu coração. Mas um dia a circunstância surge, a necessidade aperta, o cérebro desregula-se por via de um processo químico ignorado e incontrolado. A formação já não seria muita, nada perde quem nada tem, a mão levanta-se, apropria-se, prime o gatilho, desfere a catanada. Entra-se neste ritmo e depois, como acontece com todos os vícios, é o cabo dos trabalhos para voltarmos ao hábito.

Tudo visto e revisto, chegou a hora de regressar ao ponto de partida, às celas, talvez com a recordação de um momento diferente, bem passado, quem sabe, mais à frente, análise de conceitos, ideias e princípios, cogitações férteis sobre o manuseamento do leme e o destino da expedição. Os presos ajudam-me, gentilmente, a arrumar o material que os serviu. Agradecem-me, e eu a eles, por estas duas horas de sonho e aprendizagem. Teremos tido, gostaria de acreditar, neste enredo de musselina ao qual chamam convivência, segundos raros durante os quais dois homens se entreolharam sem se julgarem.

Um dos encarcerados disse a uma das calcutas “Eu vai mudar a minha vida, irimã!”. No caminho de volta, a estimada freira contava esse episódio com um travo esperançoso e crédulo na laringe. Pensei, com ironia irreflectida, “…O máximo que te poderá acontecer é mudares de cela, se te portares mal…”.

Mas cada um acredita no que quer.

Permaneço refém de uma imagem de infância que, manda a honestidade dizer, não sei se é facto histórico e consumado ou o fruto de uma imaginação sedenta de simbolismos e orientações, sinais transcendentais, enfim, o resultado de uma desesperante e inesgotável vontade de perceber quem somos e onde estamos. Reza a minha memória o seguinte. Há cerca de vinte anos, fui com a minha avó paterna a uma mercearia. À saída, ter-me-ei oferecido para carregar um dos sacos das compras. No caminho, intrigado com estas questões da omnipotência e bondade divinas, perguntei “Ó avó, se Deus é tão forte, por que é que ele não mata o diabo?”. A minha avó, terá reflectido um pouco sobre a questão e respondeu “Porque o diabo também faz coisas boas. Agora, foi ele que te mandou levares esse saco.” Quem tem ouvidos, ouça, quem puder compreender, compreenda.

Olhar para elas já seria recompensa suficiente, quanto mais estar junto ao maior expoente da existência humana, tocar-lhes no rosto, sorrir-lhes fielmente e pegá-las ao colo. A única desilusão que não tive nesta caminhada foi a criança africana, a mais pobre e serena do mundo, amigável e medrosa. Vê-los descalços, roupa encardida, olhos negros e fundos, a viva curiosidade...

As crianças, e estas em especial, são percentagem considerável da beleza da Terra. A sua superioridade é de tal forma evidente que não contempla discussão. Percebo agora Heraclito, percebo agora aquele que me disse, um dia, durante uma festa, “Sabes, de toda esta gente, aquele com quem mais me identifico é a criança de 3 anos”. Perpassou no ilustre filósofo e neste simplório confidente o desejo de se aproveitarem um pouco da grandeza dos petizes. Surpreendem-me, pois, esses que arreiam nas crianças com o pretexto de assim as educarem, quando facilmente se encontram adultos mais merecedores de sova e menos sensíveis às orientações e às palavras reparadoras. A menos que alguém tenha conhecido menino ou menina que merecesse mais as palmadas que lhe dão do que quem lhas dá.

Foi assim que, alegremente, recebi o convite das irmãs da caridade para projectar o filme sobre a vida de Jesus a 300 crianças de idades entre os 5 e os 12 anos.

Entrei no recinto onde se encontra o salão da paróquia e já lá estava, ansiosa, a multidão de querubins. Olharam-me com temor, sem a descrição que os impuros e argutos investem em tudo quanto fazem, miraram-me candidamente, algumas sorriram, outras recolheram o rosto com vergonha, outras, ainda, pasmaram-se apenas.

Tudo preparado. Iniciámos a projecção do filme. Passados alguns instantes, notei que a muitos muito do filme escapava. Para crianças que apenas dominam a língua macua, está mais acessível um coco agarrado à sua mãe de 4 metros, do que um filme falado em inglês e legendado em português. Pelo que me vi compelido a interromper periodicamente a viva locomoção imagética para lhes explicar o que viam e quanto diziam aquela senhora, este romano, aqueloutro carpinteiro. Crianças de má sorte! Estão numa escarpa e querem passar para outra, além do desfiladeiro, e a ponte que lhes servem é de estaca comida pelo bicho, paus transviados, enfim, um comunicador deficiente no geral, em particular com as crianças, o que dizer das que pouco português conhecem. Mas a verdade é que escutaram atentamente a minha voz, a explicação, as sugestões, os prelúdios, os prognósticos, enfim, a sua grandiosidade é tal que não olhavam para o lado, com receio de me desconsiderarem.

Valeu que o filme era rico em imagens e música, mas comedido em palavras. Quando Jesus nasceu, um “Ahhh!” geral propagou-se pela sala, os sorrisos espalharam-se por todos os rostos. Mais adiante, a Paixão. Jesus está deitado sobre um tronco delgado que o atravessa de um braço ao outro. O centurião ordena aos súbditos que façam o prego perfurar a carne das mãos boas deste homem, e a cada estocada, estas meninas e estes meninos fecham os olhos, escondem a face, aturdidos de terror. Uma rapariguinha entra num choro convulsivo. Não me consigo conter e o riso que tentava trancar viola a fechadura, sai à porta e mostra-se, deixando as crianças espantadas. Não saberão, talvez, que me rio de felicidade por poder observá-las e estar perto delas.

A Beleza é escura, pequena, move-se lentamente, tem um andar privado e senta-se ao nosso colo se lhe conquistarmos a confiança. Depois do primeiro impacto, mantém uma expressão estranha, que nem é de felicidade nem de tristeza, pareceria reflexiva, não fosse a idade. Aninha-se, apenas, recebe as carícias que lhe dão e não exigiu, demora-se naquela pureza tranquila somente ao alcance de quem está em paz absoluta…

Monday, May 07, 2007

O Último Embondeiro - 27.04.2007 a 29.04.2007

Se existisse um lugar onde pequenas casas de alvenaria, alinhadas a regra e esquadro, se dispusessem comodamente numa pequena porção de espaço. Todas em fila, bordejando uma estrada de terra com pouco mais de cem metros. As árvores espalhar-se-iam por toda a parte, a natureza viva e fresca embrenhar-se-ia com os pedregulhos embotados e cinzentos. E se este cenário estivesse envolvido por um concha aberta de pequenas e mastodônticas montanhas, penedos e fragas, tudo coberto de um tenro verde, despoletando no visitante e habitante a sensação de que a natureza nos quer bem e jamais nos molestará. E se existisse um sítio assim…

Foi preciso caminhar muito para chegar. Mais de 250 km, sempre por estrada intransitável. Buracos e crateras, desvios e poças, pontes descaídas, leitos de rio a arar no centro da via, explicando-nos o que foi preciso transformar para que este planeta nos servisse. E á medida que avançávamos mais nos distanciávamos do escol civilizacional. Para onde vamos, a electricidade ainda não foi domada, os telefones buscam em vão o sinal das antenas, a imagem colorida do televisor tardará em se arrimar. Mas chegámos, e não é permitido esquecer a magia que se desenha na alma do Homem que chega ao fim do mundo, ao termo da história.

Os gigantes monolíticos unem-se como se de siameses se tratasse. São o notável resultado de uma excitante e geológica gestação. Fazem a meia elipse das duas mãos abertas juntas pelos punhos, prontas a amparar. Árvores baixas e outra vegetação rasteira trepam incansavelmente os íngremes penhascos, mas nenhuma se atreve a atingir o cume, ou, pura e simplesmente, talvez as forças não cheguem a tanto. E nós, quantas vezes, artilhados de cordas e calçado apropriado, mosquetões e arneses, vacilámos nos últimos metros da subida? E a camélia branca, da qual se diz ser a beleza perfeita, esperava-nos impávida e serena. Todavia, é ciência de todos, o que custa não é a primeira metade do caminho, são os últimos passos, as estopinhas secam, nem para trás nem para diante, e aí está o cabo dos trabalhos para consolar o alpinista, pois “fez tudo quanto podia”.

Na casa dos missionários, um dos empregados, Discípulo de seu nome, envergava duas camisolas de meia manga. O sol faz o pino, nem zéfiro à vista, nem gotícula preparada para mergulhar.

Passeámos por aquela viela desnivelada, pretendendo bom dia para toda a gente, cem metros para lá e os mesmos para cá. As casas coloniais dispõem-se em formatura disciplinada, respeitando algumas intrometidas de arquitectura mais recente. Os moçambicanos ainda estão penhorados pela betoneira lusa. Todas albergam serviços administrativos e poder local. Uma delas, com pouco mais de 30 m2, encerra o tribunal distrital. Cumpre a esta instância decidir as acções de valor reduzido e os crimes mais ligeiros. Pelo palácio da justiça escorrem o tempo do desleixo e do desprezo pela manutenção. Os salpicos de tinta sobejantes asfixiam agudamente e muito se batem para provocar a reacção das células de visão cromática, que nos concedem esse espumante luxo de vermos o mundo pintado. O juiz de distrito não tem, tal como, em regra, acontece no resto do país, o curso de direito. É, talvez, um homem de bom-senso, capaz de escrevinhar ou ditar sentenças. Terá certamente dificuldade em destrinçar o costume da lei, a tradição da equidade. Hoje injustiça, amanhã a solução equilibrada, como em qualquer digno Tribunal de Direito. Seja como for, não passou por aquela patologia pertinaz, fatal para os alunos da lei, que em muitos persiste até ao fim da vida, durante a qual, na fase aguda, só sabem que adoram Kafka e, numa perfunctória cavaca cafezeira, a expensas da fleuma dos interlocutores, dilatam-se com vocábulos mais onerosos do que o sucedâneo de caviar ou as ovas de sardinha enlatadas. Em suma, devem os moçambicanos também ficar gratos aos seus colonos por não terem sido capazes de dotar os mansos e submissos de instrumentos indispensáveis ao governo de um país. De modo que depois da debanda foi um vê se te avias como puderes, desde que nos convenhas. É esta perene lógica de vos trazer num simulacro frenético estagnante que, ontem e hoje, vos destrói. E a lástima é que vós pareceis respirar indulgência perante esse desígnio de copiosa iniquidade.

Na casa destes amigos, um dos funcionários, a quem chamam Discípulo, cobre-se com duas tee-shirts. O sol está alto e sobranceiro, nem brisa se pressente, nem humidade se avizinha.

Algumas pegadas depois, encontramos o Serviço Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia de Lalaua. Segundo foi possível apurar, em todo o distrito, funciona um único computador... No muro do edifício, repousam alguns educandos, jovens ou técnicos, aguardando as benesses da luz, o primor da Internet, o servilismo vicioso do telemóvel.

Passamos pelo mercado, mini, conformando-se com o resto, no qual encontramos feirantes acomodados em cadeiras de porte ligeiro mas construção intrincada. Um tricô de canas de bambu, ponto de cruz, caseado à distância, todos esses emaranhados de fios e fiadas, embrenhados até tomarem a forma desse utensílio tão apreciado pelos cultores do descanso. Pelo seu aspecto tosco e a sua pobreza de material chamam-lhe, nestas paragens, Cadeira de Começar a Vida. Seria bom acreditar nesta filosófica e prospectiva designação, pois isso significaria que este assento pertence àqueles que almejam um futuro melhor. Bom seria, de facto, porquanto cada vez se apresenta mais árduo escavar e desencantar a materialização dos pilares necessários ao sustento de uma esperança condigna, que nos olha sem timidez e diz “Aqui me tens, ao serviço das tuas pernas e braços, ouvidos e boca, aqui estou eu, pronta a estimular indeterminadamente o teu coração”.

Num pequeno talhão cercado por estacas de madeira, jaz fenecida a campa de um régulo importante neste território. Ao seu lado erige-se uma árvore de corpo robusto, desfolhada, um desafio à estética. Representa a planta lenhosa mais excelsa das que caminham por este planeta. Se estamos na meta do mundo, na raia da história, é, provavelmente, o último dos embondeiros…

Neste reservatório da minha gratidão, um dócil homem, biblicamente nomeado Discípulo, usa o já mencionado duplo envoltório. O astro-rei resplandece com fôlego, nem aragem delicada, nem chuvisco prematuro se assoma.

Segundo o cálculo mais realista, terão morrido trinta milhões de negros só no transporte de escravos até aos locais onde era premente a sua precisão. É este o maior genocídio da história. Nem Incas, nem Astecas, nem Judeus nem outros que tal, ninguém se pode lamentar de tanta atrocidade como estes povos. Isto assim, esquecendo o relato das vidas dos sobreviventes, servos e seviciados durante gerações. Consta que muitos escravos comiam as próprias fezes para se suicidarem, pois na sua honra não cabia aquele enxovalho, contudo, nas suas forças também não entrava o poder da libertação. E se os pretos não tinham alma, por que motivo ela lhes doía tanto? A nós, descendentes do chicote e dos grilhões, cabe-nos, penso eu, recordar e amenizar os efeitos desta tortura. Todavia, por vezes, já não sei se legítima ou ilegitimamente, cruzamos os braços, fugimos do mais poderoso e destrutivo dos sentimentos, superior ao mais profuso amor materno e paterno, o poço onde explicamos quem somos, esse sentimento, ou essa, da qual havemos de falar um dia, noutros lugares, se a vida assim quiser, essa, a quem chamam Culpa. Não sendo castrando esse hábito de louvar os descobrimentos e o domínio sobre o mundo, havemos de reconhecer que quem herda os bens, herda os males, quem sucede nos direitos, sucede nos deveres, quem aceita os créditos, aceita as dívidas. E se nós, porventura, não devemos esquecer quem fomos, não podem estes viver perpetuamente atrofiados na vitimação inextinguível, que tudo justifica, a começar no ócio, mãe de todos os vícios, a acabar no ofício da mendicidade, pai da maior das humilhações. Levará tempo até que, aos olhos desta gente, eu perca a cor branca, e que eles, aos meus, se desfaçam da epiderme pardacenta. Todavia, já encetámos a longa caminhada.

“Ó Discípulo,” perguntou o Alberto, um bom amigo missionário, “por que é que anda com duas camisetes?”, inclinando para baixo a cabeça, “Ó Senhor Padre, é para não apanhar tanto Sol e ficar um pouco mais claro, como o Senhor Padre”.

Tuesday, May 01, 2007

Alberto ou le Saudosisme - 194… a 20…

“Rapaz, rapaz, ó rapaz, anda cá”. Foi assim que Alberto, já frágil mas no início da vida, se convenceu de que o seu nome, em português, era Rapaz. Bem se vê que para uma criança moçambicana, em 1940 e quê, muito longe de conhecer a língua do seu país, Rapaz pudesse muito bem ser a tradução do seu melodioso nome makhua, Alberto, para a língua da nação, o português. Provindo a convocatória de uma branca bem-posta e esposa de gente distinta, oficial ou sabe-se lá quanto mais, sendo o convocado portador de uma ternura inocente, nada nos resta senão acreditar, por ser verosímil, que Alberto cuidou, um dia, chamar-se Rapaz.

No dia 30.09.2006, entrei derreado na casa dos missionários, amassado no corpo e na alma. Encontrei então este velho homem, de diminuída estatura, corcovado, andar desengonçado e desfalcado nos dentes. Serviu-me cabrito com arroz, que, não obstante a fome, comi moderadamente e disfarçando a avidez, tal era a cerimónia que ainda me impunha, aquela fina relutância em sermos genuínos quando chegamos ao desconhecido. E, nessa noite, vi-o partir para casa, gozando do privilégio de usar um chapéu da selecção das quinas.

Os dias correram, o acanhamento dissipou-se, e gradualmente fui entrando na cozinha, já não para beber água, já não apenas para requisitar pão e leite, mas para trocar palavras e comentários com este amistoso cozinheiro. Algo haveria de nos unir. Luto por compreender essa estirpe maquilhada que, assim, numa superficialidade arrepiante se deita a desprezar o futebol. Vivem, quiçá, alojados em mundos ininteligíveis de opiniões relevantes, fraseologia sibilina e concupiscente, põem-se no cimo da montanha quando até o sopé, vida tivesse, os rejeitaria. Masturbam-se, possivelmente, a decifrar os inextrincáveis paradoxos de Zenão, mas desconhecem que o Benfica é o maior clube do mundo. Pobre gente! “Ó senhor Alberto, qual é o seu clube?”, “Xi, eu sou do Porto. Do Porto, mesmo. Até chama-me Pinto da Costa”, “Senhor Alberto, já estragou tudo. Então você é o do Porto! Não sei se nos vamos dar bem…” E entre um sorriso benigno, um descer de pálpebras complacente, encontramo-nos, sintonizamo-nos, descobrimos, enfim, o primeiro elo de ligação. É este o inigualável poder do futebol, que mais nada possui: dois estranhos cruzam-se ocasionalmente, um pergunta ao outro qual é o seu clube, e conversam a tarde toda.

Este que agora vedes, corpo obsoleto e figura de pouca cobiça, foi em tempos extremo do Ferroviário de Nampula. Já nos tempos clube de destaque, ainda hoje os pelados da nação aceitam com alguma distinção os seus valorosos atletas. Ao meu Alberto, essa arte de pés valeu-lhe a equiparação. E ser indígena assimilado a português não era consagração de desprezo, antes ao contrário, tratava-se de honraria aplaudida, fonte de direitos, semente de estatuto e progresso pessoal. O prognóstico era, a este tempo, colorido, pedia aos lábios que se esticassem na horizontal. Mas o tempo passa. E quantas vezes ele despreza imperialmente as nossas mais repetidas e devotas preces de imutabilidade, de continuidade, de permanência? Só quem passou pelo estranho e insondável lamento, vertido na exclamação “Nunca mais serei tão feliz como fui!” poderá sopesar a tristeza profunda que encontramos no decaimento, no triste desprendimento pela própria existência. Olhámos para trás, o coração apertou-se, a sístole susteve-se, e pensámos “Mas devo continuar”. Interiorizámos o comando perceptivo e o sangue voltou, contra o seu gosto, a percorrer os seus caminhos. Seu pai não lhe permitiu o salto para o Ferroviário do Maputo, outro palco e outras luzes, outras esperanças e futuros, enfim, a história muito ouvida, “Podia ter sido um grande jogador, mas isto e aquilo. Jeito não faltava. Olha, ainda treinei com este, aquele e aqueloutro…”. O meu Alberto ficou, pois, remetido ao provincianismo futebolístico e, alguns anos passaram, a carreira findou, e dos campos da bola saltou para a cozinha de um distinto Sr. Dr., médico na cidade de Nampula.

A estima por esta gente ainda lhe estala crepitante no olhar, quando recorda esses tempos. “Era gente boa. Amiga de mim. Muito boa.” E, de facto, bom trato davam ao cozinheiro. Chegou a ir às Chocas, no Verão, e a gozar merecido descanso na época estival. E a Senhora, que, pelo visto, o instruiu com sucesso no mester da colher de pau, do condimento e do gostinho, da cebola e do alho, do azeite e das ervas, do especial travo lusitano que se entranha no lácteo cabrito, capaz de nos transportar à nossa terra. E a vida poderia ter mantido este registo, pois se aqueles vinham para ficar e este estava acomodado no seu amigo seio, não se assomavam motivos para que o convívio se extinguisse, para que as partes de apartassem.

Sob o seguro o secundário Sol primaveril, a arma posa na vertical e de perfil, detida nas mãos de um trajo militar. A criança, de fartos caracóis loiros, equilibrando-se no poleiro feito de bicos de pés, exibindo a expressão facial própria de quem está empenhado numa tarefa manual complexa, boca deslocada, narinas dilatas, olhos de bugalho, estica o braço e faz o cravo escorregar pelo cano mortífero da metralhadora.

Sob as derradeiras e moderadas enxurradas da época das chuvas, centenas de milhares fazem a selecção fundamental entre o essencial e o fungível, o valioso e o dispensável, o pequeno e o grande, enfim, entre aquilo que é possível levar e o que se impõe deixar, emalam as papaias e as mangas recolhidas com o auxílio do ambicioso escopro. Correm para os portos e aeroportos, onde encontram um transporte quase fidedigno para o património móvel. Em passos trementes e coarctados pelo coração, mas coagidos pela razão, avançam lentamente, deixando a casa, a fábrica, as infinitas machambas, a fortuna e a felicidade, as vergastadas no lombo de alguns servos, perpetrada pela crueldade, as saudades e fortes lamentos de alguns empregados, regadas pelo humanismo e pela bondade.

Despolitizado como estava, nem lhe ocorreram os benefícios políticos e sociais, financeiros e económicos, a reconciliação histórica, a reposição da justiça, a projecção do Homem Novo, a promessa de igualdade, o fim da discriminação, o termo da miséria. Ficou sem patrões, e é tudo. Sem revoltas ou alegrias, cedo se conformou com o novo quadro, num minuto se acomodou ao novo cenário.

Um homem estava sentado numa cadeira, enquanto outros dez, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos espectadores como as trepadeiras se entretecem no poste dos alpendres bem tratados. Um dos verticais, irrequieto e reflexivo, deu um passo em frente, esperando que os demais o concitassem a tosar devidamente os costados ao repoltreado apupado, materializando-se o que era já consciência universal, mas apenas tinha ser linguístico, “Essa cadeira é de todos.”. Um insurrecto bem sucedido estava sentado numa cadeira enquanto outros nove, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos vetustos espectadores como as trepadeiras se entretecem nas hastes dos alpendres bem tratados. Outro dos verticais, insatisfeito e destemido, deu um passo em diante, aguardando que os demais o instigassem a surrar convenientemente o pêlo do acomodado vilipendiado, concretizando-se o que era já ciência geral, mas apenas tinha existência sonora, “Essa cadeira também é nossa.” O segundo sublevado estava sentado…

Passou a trabalhar na fábrica, até que a maquinaria administrativa e o rigor contabilístico exasperaram, saía mais do que entrava, muito na mão e pouco no bolso, até que cerraram a mais fundamental das portas e a questão “défice, não défice” ficou solucionada.

Precisaram de um cozinheiro na nova casa dos missionários. A oportunidade tocou à campainha de Alberto, abriu-lhe a porta e acolheu-a como aprazível para o seu destino. E, doze ou mais anos passados, o tacho continua a escaldar a sua base sob as ordens do Senhor Alberto.

Ter-me-á dito um dia que o seu grande sonho era passear-se por Portugal. Mas estranhei no seu semblante um estado de alma inapropriado à pretensão que me apresentava. Ao invés da fácies desejosa de novidade, do nunca visto, de abrir a porta cerrada, dispunha-se com ares de quem já conhecia o majestoso saudar do pinheiro bravo, as serras e os montes caiados de cerejeiras em flor. Parecia recordar-se de, encostado a um pipo, beber num trago o vinho que banha o pedaço de chouriça condimentada, provocando o faiscar baboso do palato. E pergunto-me se poderei asseverar sem tropeçar num ilogismo “Conheci um homem que tinha saudades de um sítio onde nunca tinha estado!”.

Certa vez, levou-me a conhecer o seu bairro. Na digna casa onde vive, comprada pelos Combonianos, junta a sua numerosa família na demanda parcialmente infrutífera por um futuro mais próspero. A morada deste cozinheiro, composta por blocos e cimento, tem um pequeno avançado ao qual chamam varanda, onde nos podemos sentar e observar o vaivém dos habitantes deste bairro. A rua principal, térrea e irregular, está ladeada por casas e casebres que afrontam os transeuntes. Mais adiante, um mercado de tudo, de farpelas e calçado, batatas e cebolas, alho e feijão, milho e farinha, pilhas e preservativos, espelhos e esferográficas, enfim, quinquilharia usada, víveres e bricabraque para quase todas as mais elementares necessidades de um povo pouco exigente.

Presentearam-no com um fato de treino azul, uma camisola oficial do FCP, um chapéu do mesmo emblema. E foi vê-lo, nas suas folgas, passear com profusa polpa, inchado como um grão de arroz aquático, parando aqui e ali para cumprimentar conhecidos e amigos, beber um refresco, mostrar a esta cidadela carenciada quem é, afinal, o grande adepto, quem é o detentor da figura mais virtuosa em estética e bom-gosto. Para fazer crescer o já vasto conglomerado de soberbos adornos dei-lhe algumas amostras de perfume. Pegou nas primeiras gotas balsâmicas e, à minha frente, impedindo-me um ai, sorrindo envergonhadamente por tanta vaidade, decantou o frasco na cabeça. “Ó senhor Alberto, isso não é assim! É para o pescoço e só precisa de deitar um pouco.” Riu-se da sua ânsia em ficar superiormente apetecível. Agora, instruído sobre as funções, fins e regras utilitárias do perfume, suponho-o caminhando, ao fim da tarde, imagino aquele vulto azul, com um sorriso de satisfação e realização, calcorreando as ruas de Nampula, largando na brisa tépida a mesma fragrância que enaltece qualquer fidalga senhora nas avenidas mais imponentes de Nova Iorque.

Sentado à mesa metálica da cozinha, depois de nós nos termos saciado, engole apressadamente o jantar para evitar, na caminhada de regresso ao lar, os perigos e azares em que a noite é fértil. Nádega e meia na cadeira, tronco curvado sobre o prato, copo encardido à frente. É impressionante como a simplicidade não nos larga, quando está entranhada no líquido amniótico, quando foi o lugar onde nos fizemos gente e crescemos.

Na noite escura que segue o dia de trabalho, refastelado na débil cadeira da sua varanda, seu lugar cativo, faz ressoar por todo o bairro a voz de Amália. Não fosse o fado a maior de todas as saudades… Recorda os tempos em que era novo e rijo, tinha esperança num futuro providente e bonançoso, corria atrás da bola irrequieta, no campo do Ferroviário de Nampula. E o amante da lhaneza, paciente e discreto, poderá ainda hoje sentar-se numa pedra angulosa do bairro, segurar o queixo com o punho, e ouvir este homem recordar quem foi, observar Alberto Chauveke, o rapaz que, um dia, cuidou chamar-se Rapaz.

“Eu tem tido sorte com as pessoas.”, disse-me um dia. “Sabe porquê, Sr. Alberto?”, “Não, num sabi.”, “Porque as pessoas têm tido sorte consigo”.