Tuesday, May 01, 2007

Alberto ou le Saudosisme - 194… a 20…

“Rapaz, rapaz, ó rapaz, anda cá”. Foi assim que Alberto, já frágil mas no início da vida, se convenceu de que o seu nome, em português, era Rapaz. Bem se vê que para uma criança moçambicana, em 1940 e quê, muito longe de conhecer a língua do seu país, Rapaz pudesse muito bem ser a tradução do seu melodioso nome makhua, Alberto, para a língua da nação, o português. Provindo a convocatória de uma branca bem-posta e esposa de gente distinta, oficial ou sabe-se lá quanto mais, sendo o convocado portador de uma ternura inocente, nada nos resta senão acreditar, por ser verosímil, que Alberto cuidou, um dia, chamar-se Rapaz.

No dia 30.09.2006, entrei derreado na casa dos missionários, amassado no corpo e na alma. Encontrei então este velho homem, de diminuída estatura, corcovado, andar desengonçado e desfalcado nos dentes. Serviu-me cabrito com arroz, que, não obstante a fome, comi moderadamente e disfarçando a avidez, tal era a cerimónia que ainda me impunha, aquela fina relutância em sermos genuínos quando chegamos ao desconhecido. E, nessa noite, vi-o partir para casa, gozando do privilégio de usar um chapéu da selecção das quinas.

Os dias correram, o acanhamento dissipou-se, e gradualmente fui entrando na cozinha, já não para beber água, já não apenas para requisitar pão e leite, mas para trocar palavras e comentários com este amistoso cozinheiro. Algo haveria de nos unir. Luto por compreender essa estirpe maquilhada que, assim, numa superficialidade arrepiante se deita a desprezar o futebol. Vivem, quiçá, alojados em mundos ininteligíveis de opiniões relevantes, fraseologia sibilina e concupiscente, põem-se no cimo da montanha quando até o sopé, vida tivesse, os rejeitaria. Masturbam-se, possivelmente, a decifrar os inextrincáveis paradoxos de Zenão, mas desconhecem que o Benfica é o maior clube do mundo. Pobre gente! “Ó senhor Alberto, qual é o seu clube?”, “Xi, eu sou do Porto. Do Porto, mesmo. Até chama-me Pinto da Costa”, “Senhor Alberto, já estragou tudo. Então você é o do Porto! Não sei se nos vamos dar bem…” E entre um sorriso benigno, um descer de pálpebras complacente, encontramo-nos, sintonizamo-nos, descobrimos, enfim, o primeiro elo de ligação. É este o inigualável poder do futebol, que mais nada possui: dois estranhos cruzam-se ocasionalmente, um pergunta ao outro qual é o seu clube, e conversam a tarde toda.

Este que agora vedes, corpo obsoleto e figura de pouca cobiça, foi em tempos extremo do Ferroviário de Nampula. Já nos tempos clube de destaque, ainda hoje os pelados da nação aceitam com alguma distinção os seus valorosos atletas. Ao meu Alberto, essa arte de pés valeu-lhe a equiparação. E ser indígena assimilado a português não era consagração de desprezo, antes ao contrário, tratava-se de honraria aplaudida, fonte de direitos, semente de estatuto e progresso pessoal. O prognóstico era, a este tempo, colorido, pedia aos lábios que se esticassem na horizontal. Mas o tempo passa. E quantas vezes ele despreza imperialmente as nossas mais repetidas e devotas preces de imutabilidade, de continuidade, de permanência? Só quem passou pelo estranho e insondável lamento, vertido na exclamação “Nunca mais serei tão feliz como fui!” poderá sopesar a tristeza profunda que encontramos no decaimento, no triste desprendimento pela própria existência. Olhámos para trás, o coração apertou-se, a sístole susteve-se, e pensámos “Mas devo continuar”. Interiorizámos o comando perceptivo e o sangue voltou, contra o seu gosto, a percorrer os seus caminhos. Seu pai não lhe permitiu o salto para o Ferroviário do Maputo, outro palco e outras luzes, outras esperanças e futuros, enfim, a história muito ouvida, “Podia ter sido um grande jogador, mas isto e aquilo. Jeito não faltava. Olha, ainda treinei com este, aquele e aqueloutro…”. O meu Alberto ficou, pois, remetido ao provincianismo futebolístico e, alguns anos passaram, a carreira findou, e dos campos da bola saltou para a cozinha de um distinto Sr. Dr., médico na cidade de Nampula.

A estima por esta gente ainda lhe estala crepitante no olhar, quando recorda esses tempos. “Era gente boa. Amiga de mim. Muito boa.” E, de facto, bom trato davam ao cozinheiro. Chegou a ir às Chocas, no Verão, e a gozar merecido descanso na época estival. E a Senhora, que, pelo visto, o instruiu com sucesso no mester da colher de pau, do condimento e do gostinho, da cebola e do alho, do azeite e das ervas, do especial travo lusitano que se entranha no lácteo cabrito, capaz de nos transportar à nossa terra. E a vida poderia ter mantido este registo, pois se aqueles vinham para ficar e este estava acomodado no seu amigo seio, não se assomavam motivos para que o convívio se extinguisse, para que as partes de apartassem.

Sob o seguro o secundário Sol primaveril, a arma posa na vertical e de perfil, detida nas mãos de um trajo militar. A criança, de fartos caracóis loiros, equilibrando-se no poleiro feito de bicos de pés, exibindo a expressão facial própria de quem está empenhado numa tarefa manual complexa, boca deslocada, narinas dilatas, olhos de bugalho, estica o braço e faz o cravo escorregar pelo cano mortífero da metralhadora.

Sob as derradeiras e moderadas enxurradas da época das chuvas, centenas de milhares fazem a selecção fundamental entre o essencial e o fungível, o valioso e o dispensável, o pequeno e o grande, enfim, entre aquilo que é possível levar e o que se impõe deixar, emalam as papaias e as mangas recolhidas com o auxílio do ambicioso escopro. Correm para os portos e aeroportos, onde encontram um transporte quase fidedigno para o património móvel. Em passos trementes e coarctados pelo coração, mas coagidos pela razão, avançam lentamente, deixando a casa, a fábrica, as infinitas machambas, a fortuna e a felicidade, as vergastadas no lombo de alguns servos, perpetrada pela crueldade, as saudades e fortes lamentos de alguns empregados, regadas pelo humanismo e pela bondade.

Despolitizado como estava, nem lhe ocorreram os benefícios políticos e sociais, financeiros e económicos, a reconciliação histórica, a reposição da justiça, a projecção do Homem Novo, a promessa de igualdade, o fim da discriminação, o termo da miséria. Ficou sem patrões, e é tudo. Sem revoltas ou alegrias, cedo se conformou com o novo quadro, num minuto se acomodou ao novo cenário.

Um homem estava sentado numa cadeira, enquanto outros dez, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos espectadores como as trepadeiras se entretecem no poste dos alpendres bem tratados. Um dos verticais, irrequieto e reflexivo, deu um passo em frente, esperando que os demais o concitassem a tosar devidamente os costados ao repoltreado apupado, materializando-se o que era já consciência universal, mas apenas tinha ser linguístico, “Essa cadeira é de todos.”. Um insurrecto bem sucedido estava sentado numa cadeira enquanto outros nove, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos vetustos espectadores como as trepadeiras se entretecem nas hastes dos alpendres bem tratados. Outro dos verticais, insatisfeito e destemido, deu um passo em diante, aguardando que os demais o instigassem a surrar convenientemente o pêlo do acomodado vilipendiado, concretizando-se o que era já ciência geral, mas apenas tinha existência sonora, “Essa cadeira também é nossa.” O segundo sublevado estava sentado…

Passou a trabalhar na fábrica, até que a maquinaria administrativa e o rigor contabilístico exasperaram, saía mais do que entrava, muito na mão e pouco no bolso, até que cerraram a mais fundamental das portas e a questão “défice, não défice” ficou solucionada.

Precisaram de um cozinheiro na nova casa dos missionários. A oportunidade tocou à campainha de Alberto, abriu-lhe a porta e acolheu-a como aprazível para o seu destino. E, doze ou mais anos passados, o tacho continua a escaldar a sua base sob as ordens do Senhor Alberto.

Ter-me-á dito um dia que o seu grande sonho era passear-se por Portugal. Mas estranhei no seu semblante um estado de alma inapropriado à pretensão que me apresentava. Ao invés da fácies desejosa de novidade, do nunca visto, de abrir a porta cerrada, dispunha-se com ares de quem já conhecia o majestoso saudar do pinheiro bravo, as serras e os montes caiados de cerejeiras em flor. Parecia recordar-se de, encostado a um pipo, beber num trago o vinho que banha o pedaço de chouriça condimentada, provocando o faiscar baboso do palato. E pergunto-me se poderei asseverar sem tropeçar num ilogismo “Conheci um homem que tinha saudades de um sítio onde nunca tinha estado!”.

Certa vez, levou-me a conhecer o seu bairro. Na digna casa onde vive, comprada pelos Combonianos, junta a sua numerosa família na demanda parcialmente infrutífera por um futuro mais próspero. A morada deste cozinheiro, composta por blocos e cimento, tem um pequeno avançado ao qual chamam varanda, onde nos podemos sentar e observar o vaivém dos habitantes deste bairro. A rua principal, térrea e irregular, está ladeada por casas e casebres que afrontam os transeuntes. Mais adiante, um mercado de tudo, de farpelas e calçado, batatas e cebolas, alho e feijão, milho e farinha, pilhas e preservativos, espelhos e esferográficas, enfim, quinquilharia usada, víveres e bricabraque para quase todas as mais elementares necessidades de um povo pouco exigente.

Presentearam-no com um fato de treino azul, uma camisola oficial do FCP, um chapéu do mesmo emblema. E foi vê-lo, nas suas folgas, passear com profusa polpa, inchado como um grão de arroz aquático, parando aqui e ali para cumprimentar conhecidos e amigos, beber um refresco, mostrar a esta cidadela carenciada quem é, afinal, o grande adepto, quem é o detentor da figura mais virtuosa em estética e bom-gosto. Para fazer crescer o já vasto conglomerado de soberbos adornos dei-lhe algumas amostras de perfume. Pegou nas primeiras gotas balsâmicas e, à minha frente, impedindo-me um ai, sorrindo envergonhadamente por tanta vaidade, decantou o frasco na cabeça. “Ó senhor Alberto, isso não é assim! É para o pescoço e só precisa de deitar um pouco.” Riu-se da sua ânsia em ficar superiormente apetecível. Agora, instruído sobre as funções, fins e regras utilitárias do perfume, suponho-o caminhando, ao fim da tarde, imagino aquele vulto azul, com um sorriso de satisfação e realização, calcorreando as ruas de Nampula, largando na brisa tépida a mesma fragrância que enaltece qualquer fidalga senhora nas avenidas mais imponentes de Nova Iorque.

Sentado à mesa metálica da cozinha, depois de nós nos termos saciado, engole apressadamente o jantar para evitar, na caminhada de regresso ao lar, os perigos e azares em que a noite é fértil. Nádega e meia na cadeira, tronco curvado sobre o prato, copo encardido à frente. É impressionante como a simplicidade não nos larga, quando está entranhada no líquido amniótico, quando foi o lugar onde nos fizemos gente e crescemos.

Na noite escura que segue o dia de trabalho, refastelado na débil cadeira da sua varanda, seu lugar cativo, faz ressoar por todo o bairro a voz de Amália. Não fosse o fado a maior de todas as saudades… Recorda os tempos em que era novo e rijo, tinha esperança num futuro providente e bonançoso, corria atrás da bola irrequieta, no campo do Ferroviário de Nampula. E o amante da lhaneza, paciente e discreto, poderá ainda hoje sentar-se numa pedra angulosa do bairro, segurar o queixo com o punho, e ouvir este homem recordar quem foi, observar Alberto Chauveke, o rapaz que, um dia, cuidou chamar-se Rapaz.

“Eu tem tido sorte com as pessoas.”, disse-me um dia. “Sabe porquê, Sr. Alberto?”, “Não, num sabi.”, “Porque as pessoas têm tido sorte consigo”.

3 Comments:

Blogger IM said...

E Nampula tem tido muita sorte contigo!

6:09 AM  
Anonymous Anonymous said...

Adorei a descrição do Alberto

Bjs

M. Melo

9:08 AM  
Blogger NM said...

Um abraço para ti João.

Nuno, Raquel, João e Afonso

2:11 PM  

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