Friday, January 26, 2007

N'Alua - 13.01.2007 a 16.01.2007

O pano nocturno sobe lentamente, permitindo a invasão da juvenil clareira pelas janelas do quarto onde durmo na missão do Alua. Aqui chegámos, ontem, eu e o meu tio. Ele revê, visita, relembra, eu descubro e conheço estes relevos singulares, de montanhas informes intercaladas por curtas planícies semicultivadas, que são a doce antecâmara de Pemba, antigo Porto-Amélia.

Muito se fala e escreve sobre o entardecer africano, todavia, por falta de atenção, razão, ou por excesso de preguiça, são poucos os glosadores do amanhecer. Talvez seja, apenas, porque a sensibilidade dos mais sonhadores se alimenta da escuridão e, assim, desperta com o cair do dia.

O relógio marca 4h e 38m. Levanto-me com esforço, movido pela pretensão de saber como nasce África. Venho para varanda. Sentado numa cadeira franca, observo a estrada de terra batida ladeada por duas filas infinitas de espadaúdos coqueiros cujas folhas, jogadas para cá e para lá ao sabor da suave brisa, se tocam e beijam. A luz do Sol ilumina vagarosamente esta paisagem edénica. E fá-lo a medo, receoso de desviar as mantas e encontrar coqueiros contritos, surpreendidos na sua indecorosa mas inocente luxúria, obrigados a confessar que o amor os une. E de repente, como se as primeiras luminosidades houvessem sido somente um aviso, num movimento açudado, que tudo se perderia se os olhos piscassem, a claridade alaga este pequeno universo e o dia chegou.

Nestes ambientes, sentimo-nos vivos. Não é enquanto corremos que temos a noção verdadeira do cansaço. É quando paramos. A boca seca-se até ao sufoco, as pernas tremem até ao desequilíbrio, o cérebro rodopia suplicando por oxigénio. Percebemos, finalmente, como têm sido esforçada esta caminhada. Com isto de estarmos vivos sucede exactamente o mesmo.

À parte alguns pássaros, imbuídos nos seus recitais matutinos, o silêncio faz um eco bonançoso de calma e solidão. Até que as vejo, envolvidas nas capulanas, com os filhos a tiracolo e as pequenas enxadas equilibradas na cabeça. Palmilham caminho entre os coqueiros, em direcção à machamba, onde acariciam e amimam a terra, para que ela, em troca, numa salva de agradecimento, partilhe a sua riqueza infinda. Impressiona sobremaneira o hábito desta gente em tudo pôr à cabeça. Bacias, tachos, paus, carvão, sacas de mandioca, até, sem faltar à verdade, cheguei a ver um pequeno rapaz que transportava, com habilidade impressionante, uma mirrada laranja no cocuruto. De uma perspectiva funcional, ganha-se largamente, pois as mãos permanecem livres para os restantes afazeres. Por ventura, vendo a questão do lado anatómico, esta prática contribui para o achatamento do crânio. Seja como for, desprezando as virtudes e os prejuízos, dou por mim, de vez em quando, a querer temer que os africanos, numa acção concertada pouco vista neste continente, façam o pino e virem o mundo ao contrário.

No terceiro dia da nossa viagem, enquanto conversávamos sobre o futuro desta gente, na sala da casa em Nacala, reparei num relógio de parede cujo fundo é África. Fiz notar ao meu tio que os ponteiros tinham parado quando apontavam para Norte, para a Europa rica e desenvolvida, “Vê bem, até aquele relógio nos diz que a hora de África nunca chegará”. O meu tio levantou-se e tocou ao de leve nos ponteiros que, estranhamente, recomeçaram a sua caminhada pelo tempo. “Vês, só precisam de um pequeno empurrão”. “Nem penses, verás que param novamente quando estiverem na direcção da Ásia. Nunca chegarão aqui”. Levantámo-nos e fomos dormir, e enquanto os olhos se cerravam de forma indecisa, naqueles instantes gozados entre o sono e a vigília, ainda desejei falhar a profecia.

No Alua, quando regressávamos de mais uma cantada e dançada missa de Domingo, entabulei conversa com um petiz de andar desengonçado e descontraído. “Ó Firmino, tu não és capaz de subir aos coqueiros, pois não?”, “Sou, sou.”, “A sério? Bom, tu és mesmo valente. E se cais?”. Parou, fixou-me para preencher de solenidade a sua resposta, “É o destino…”. Tal como Heraclito, Firmino não discute, profere. Quando se observa a pobreza, apreende-se com certeza absoluta uma premissa fundamental: tudo o que é bom ou mau é o efeito de uma rede complexa de causas. Contudo, esta crença altamente difundida, manifestada na resposta de Firmino, é um factor destrutivo poderosíssimo, trespassa como uma espada impiedosa este povo, impedindo-o de progredir. Imagine quem puder o que seria viver uma vida predefinida em todas as suas vicissitudes. Qual seria a atitude do oleiro se acreditasse piamente que a azáfama do barro virgem na roda giratória e a intervenção das suas mão calejadas no composto térreo nada relevariam para a definição do produto final? Em vez de duas, utilizaria só uma, no lugar de um olhar espevitado e agudo capaz de coordenar os movimentos colocaria a distracção, perder-se-ia com o ziguezaguear dos insectos. Ao invés de transpirar a pouca soberba permitida pelos bons costumes, permaneceria indiferente perante um jarro simétrico e harmonioso. Para quem aprendeu que a cama onde nos deitamos foi feita por nós, que hoje definimos o amanhã, esta guilhotina de predestinação escapa à capacidade de compreensão. Mas ela vive, num Mundo capaz de visitar a Lua e de estar permanentemente conectado, entre esta Humanidade disposta a ir além do previsto, há quem pense que os caminhos de amanhã já estão trilhados.

A tarde já vê o rosto sereno e obscuro da noite. Observo alguns meninos sentados em bancos, por baixo de um cajueiro, conversando sobre assuntos de crianças. Até que um, mais afoito, caminha na minha direcção, e sem se aproximar totalmente, “Senhor Padre, tu és novo, anda para ali, nós vai-lhe ensinar makhua.”.

No início da minha estadia, ia muitas vezes ao mercado municipal de Nampula para comprar fruta e alface. As crianças de rua, abeiravam-se de mim, “Patrão, patrão, dá mil. Estou a pidir, tenho fomi!”, “Eu não sou patrão, já vos disse que não sou patrão, eu sou é empregado, não me chamem patrão. Dinheiro não vos dou, mas vamos ali comprar bananas.”. Repeti o procedimento uma vez, e outra, até que ao terceiro dia, “Senhor Padre, nós quer bananas.”, “Eu também não sou padre, nem patrão nem padre, sou João.”, e um deles, contando pouco mais de 6 anos, de rosto brando e trato manso, pegando-me na mão, “Está bem, Senhor Padre, vem ali comprar as bananas de nós.” São assim, estes meninos de rua, de inteligência e perspicácia altamente refinadas. Muito viram, ouviram e perceberam, sem sofismos e falsos argumentos, que, nestas terras, só por dinheiro ou por deus. A filantropia é suficiente para nove meses e pouco mais, mas para toda a vida, por tempo indeterminado, só o inigualável sustento da fé ou o poderoso dínamo da ambição.

“Senhor Padre, tu és novo, anda para ali, nós vai-lhe ensinar makhua.” Assim foi. “E os vossos nomes? Já andam na escola?”, “Amílcar, estou na 4ª classe.”, “Jorge, estou na 3ª.”, “Viegas Ramos, estou na 4ª.”, “E tu?”, “Eu?, sou Sabonete Hilário, estou na 4ª.”. “Vá, escreve no caderno, para aprenderes.”. Transformo, empiricamente, a fonética em ortografia, “Mueri é milho, matapa é caril, ekole é coco, enupá é casa….”. E assim por diante, entre brincadeiras e jogos, uma hora de aulas oferecidas, sem exigirem permuta, só pelo infindável prazer de ensinar makhua a um padre branco e novo. Quando o cansaço já se adensava nos pequenos cérebros e a mapira esperava no almofariz para ser pilada, solicitei-lhes ainda que enfeitassem o meu material escolar com os seus nomes. A muito custo, com uma caligrafia contorcionista, perdendo letras ou exagerando nas vogais, lá me ofereceram a lista desta amizade, selada por um “Até amanhã.”, da parte deles, e um “Até sempre.”, da minha. Segundo reza certa história anedótica, os efésios pediram a Heraclito que lhes elaborasse as leis do Estado. O filósofo, misantropo convicto, mandou dizer que a honra lhe não convinha, pois preferia brincar com as crianças no templo de Ártemis. Não é de extremos que vive o Homem, nem de actos tresmalhados ou devaneios jocosos, mas em verdade, muitos de nós, nesta situação ou naquele canto, desencantamos a plenitude da existência e aprendemos a ser, por breves instantes, totalmente felizes.

O dia nasce uma vez mais. O candeeiro dos pobres já se apagou, e agora é a luz ardente da grande bola de fogo que rompe as janelas mal tapadas do quarto de Nacala. Levanto-me e refaço a fisionomia, desloco-me até sala, onde encontro o meu tio já desperto, absorto no folhear reflexivo de uma revista. Olho para o relógio da noite anterior e noto que os ponteiros voltaram a encravar, mas quando apontavam para Moçambique. Chamo a atenção do meu tio, “Chegou a hora deste povo...”.

No regresso a casa, pela estrada estreita e asfaltada, a luz solar, incapaz de vencer a vedação coriácea de algumas nuvens, limita-se a iluminar parcialmente a paisagem, dizendo-nos que a utopia é o que necessita do contributo de todos, mas só alguns desejam.

Ode Fraterna - 19.12.2006 a 6.1.2007

“As pessoas são pessoas através de outras pessoas”
Provérbio Xhosa

“Sabe-lo, mas lembrar-to não é despiciendo. Amei-te enquanto exististe, amar-te-ei enquanto existir. Amei-te quando ainda não tinhas nome para te chamarem, amar-te-ei quando já não fizer sentido chamar-te. Esta é a importância do teu nome...”
Incógnito

O majestoso avião da TAP aterra finalmente no Maputo. Para trás, a 10.000 Km., ficam momentos de alegria reconfortante, para a frente, novas histórias, aventuras e lições, aqui e para sempre, memórias vivas lacradas pela amizade, porque se a vida não valer por mais nada, já valerá tudo se gostarmos muito de alguém.

As rodas trementes mas eficazes do carro bagageiro avançam paulatinamente pelo chão baço do aeroporto da Portela. É farto o cansaço de quem imprime o movimento a este veículo. Como é certo e sabido, não pode o empurrado adiantar-se a quem o empurra. E ai dele se o faz, pois arrisca-se a perder o empurrador e depois nem daqui para ali nem dali para acolá. Vislumbro finalmente estes dois que se o não fossem também eu o não seria. E uma festa serena apodera-se de cada coração, ascende à cabeça e desce ao estômago, e sem se saber porquê, sustém-se aquela lágrima ou suspiro que mostraria o evidente: é muito grande esta alegria de vos reencontrar.

E logo começou “Estás mais magro.”, “Estás cansado?”, “Dormiste?”, “Tens fome?”, “Deves descansar.”. No lar, fez-se este almoço ao qual chamam pequeno, falou-se e comentou-se, entrecruzando e misturando conversas, como sempre acontece naqueles momentos em que todo o tempo do mundo seria insuficiente para dizermos tanto quanto queremos.

Pela noite chegaria o jantar, com estes muito estimados, cada um na sua forma, porquanto todos temos a nossa. Uns mais absortos, outros mais dados ao extravasamento, estes dedutivos e aqueles mais indutivos. Saber como foi, o que foi, se a experiência é rica, se desilude ou surpreende, “Posso sugerir?, Dar uma ideia?”.

Almoçamos, ao segundo dia. Tantos rostos jovens e esperançosos. No círculo da entrada, abraçamo-nos, e quão fortes são esses amplexos, e que felicidade é a de nos envolvermos nesta celebração do reencontro e da benquerença, quem sabe, aqui e ali, da mais fecunda e autêntica fraternidade. Na mesa comprida, as palavras flúem para trás e para diante, entre piadas e remoques, comentários e saudações, enche-se o estômago de alimento e a alma de vós.

Ao jantar, sonorizado por um idioma irmão, é a ti quem vejo e observo, aproveitando os minutos, ainda no seu começo, mas já frugais para tanto fazer e dizer. Ali, numa pequena mesa quadrada, num albergue iluminado por uma luz bruxuleante, somos profusos em promessas diversas daquilo que será ou há-de ser. Sonhando com um futuro de caminhos sobrepostos, na berma dos quais se pavoneiam lustrosos alecrins, jovens acácias em flor e nobiliárquicos ulmeiros. E do mais se não fala, pois nem tudo pode ser dito e muito menos pode ser escrito.

Um breve almoço de arroz feito, no qual vos reencontro, só para vos saudar, para perguntar “Como está?”, para ouvir “Tivemos saudades tuas.”.

Encontro-me convosco para darmos vazão a esta torrente que lava a cevada e conversarmos sobre como tem sido. E não fomos moderados em alguma das tarefas. Enlevados e de coração ao alto, lá jantámos, numa confraternização cujo registo guardarei até ao fim dos tempos na algibeira das recordações mais preciosas. Perguntam-me com acuidade “Lá, o que é que te faz mais falta?”. E sem rodeios ou falácias de elegância, “São vocês”. No espaço dançante de sempre, onde as nossas pegadas já se encrostam, subo um degrau e outro, retiro-me da confusão, só para apreciar esta sorte.

Dois abraços tão esperados e sempre tão sentidos. Mais reservada e observadora, mais desprendido e poeta. O jantar é especial, pois celebramos o dia do Seu nascimento. Cada qual na sua leitura, cada um na sua festa interior, e somos tantos, muitos mesmo, e tão diferentes, mas a verdade é que todos levantamos o mesmo testo e empunhamos a mesma colher, antes de olharmos para dentro e escolhermos a nossa parte. E de tão rara deveria esta união ser conservada por muito, para sempre. “Sabes o que mais me custa? É de já não termos tempo de assistir à vida desta gente.”. E agora as despedidas, pois só daqui a seis meses nos veremos, e quanto custam…, por serdes tão especiais!

Certo dia, um homem de vida já muito longa falou-me dos seus primórdios. De como perdeu dois irmãos na febre espanhola, de como perdeu outros dois durante a 2ª Grande Guerra. “Meu Deus, como deve ter sofrido a minha mãe… Mas mesmo assim, quando cheguei a casa para comunicar a decisão de partir, disseram-me que seguisse o meu caminho, que não me importasse com eles. E eu era o único homem da família e nós éramos tão pobres. Quando me lembro…” Depois disto, virou a face e adivinho que os seus olhos terão sido toldados pelas águas da saudade e da gratidão. Nestes momentos, vislumbro seres humanos superiores, faias descomunais, belas e sumptuosas, entre sarças desengonçadas e tortulhos decadentes. É distinta, pois, a extensa ramagem destes pais.

Em ti, sentado há já largos anos, sempre descubro a paz e a riqueza de espírito envolvente e marcante, mostrando-me um outro lado da vida, mais profundo e reluzente, onde duas pessoas se encontram e deliciam com o simples prazer de se ouvirem. E de ti, nesse perene exemplo de serviço e abnegação, retiro a prova cabal de uma história singular que não cessarei de contar.

Num rodopiar kitsch buscamos o requinte e a novelle cuisine, nem que seja para podermos fazer pouco desta atitude. E falámos, disto e daquilo, de como faremos os trilhos mais descalços desta África austral.

E a senhora, muito me honra e engrandece com esse “Gostava de o ver.”. Também eu tenho prazer em vê-la.

Os grãos moídos e aromáticos deixam-se regar pela água fervente, sobrando desta harmoniosa cópula uma solução escura e amarga. Á mesa do café, com estes de coragem que decidiram existir e mostrar o quanto valem noutros recantos, ensinando-me esta verdade imensa e intocável proferida certa tarde por um altíssimo presbítero, “O mundo não está todo aqui.”.

O Sol levanta-se preguiçosamente nas vastas planícies alentejanas, combatendo com envergonhado sucesso o gelo da madrugada. Ouve-se o estoiro da rolha de uma garrafa de champanhe e existe alguém que, entre irmãos, festeja a entrada no novo ano dois dias antes de ele se apresentar.

No caminho, ainda paramos nesta terra de vinho célebre, para cumprimentar as senhoras e os senhores. E entre uns mais acalmados pela idade e outros de cinética vincada, garantimos saudades recíprocas e prometemos “Até breve.”.

Nós, tu e esses teus, nos quais deposito tanta estima, celebramos nestas pedras altas o advento de 2007. Pela noite dentro, entre esta e aquela conversa, no meio de um copo e de um abraço, um carinho e um beijo, volto a apartar-me para tomar o peso da minha felicidade. Pois isto do sorriso genuíno é não mais que o resultado de pararmos um momento, olharmos à nossa volta e tomarmos o pulso, sentir a alegria do coração, e deixarmo-nos levar pelo rio jubiloso de estarmos juntos.

Na ombreira da porta fixa-se uma placa onde se pode ler o nome da adega. Lá dentro, um peculiar ajuntamento de homens faz-me anotar que a despedida é sentida e o regresso será festejado. Entre discursos e palavras de ruborescer pergunto-me se não vão os dizeres além do visado. E logo confirmo a hipótese, mas então recordo como aprendi que no fervor da emoção somos levados a engrandecer as qualidades dos nossos amigos, deixando neste eco hiperbolizado de adjectivação a prova cabal do quanto gostamos deles. Estoutra senhora, a mais entusiasta ouvinte dos Relatos da Nigrizia, que depois de recolher com sofreguidão histórias e historietas, me diz, com um encorajador brilho nos olhos, “Vá, realize-se por mim e por si!”.

A estes me junto para celebrar o maravilhoso milagre da geração, da continuidade, desta arrepiante bem-aventurança de se poder dizer “Aqui está uma parte boa de nós.”.

Um reencontro convosco. Porque muito me ensinastes e em passos não raros mostrastes como se pode respeitar e dar a quem ensaia os primeiros passos. E assim, sinto-me compelido a aparecer para vos saudar.

E vós, há minutos no mesmo assento e hoje dispersos por ali e por aqui, mas, mesmo assim, juntos no reconhecimento de que algo de muito valioso sobrou de almoços e cafés circunstanciais. E não raras vezes ouvi-me dizer “Foi aquele gajo quem me ensinou a fazer a isto!”.

Este Senhor, a quem devo parte da vontade de ser melhor. Quão profícuo terá sido só mais tarde saberei, só quando avaliar a vida e o percurso seguido, só neste balanço poderei conjecturar sobre o menos que teria sido se ele me não tem dado a mão.

Uma breve refeição com os de ontem e outros mais, antes de partir para o aeroporto. A saudade já se apodera fielmente do coração e da firmeza das mãos.

Um telefonema único, daqueles dois especialíssimos. Entre beijos e “Toma cuidado, come e manda-lhe um grande abraço nosso.”, ouço de uma voz rouca “O tempo é um cavalo que foge…”.

Junto do balcão do aeroporto, despacho a bagagem e marco assento no avião. Entrementes, uma voz feminina confidencia-me ao ouvido “Nem sabes quantos estão ali para se despedir.”. Olho para trás e vejo o notável aglomerado de tantos que ainda se incomodaram a gastar o último minuto para dizer até logo. Abraços, beijos, despeço-me, e enquanto as escadas rolantes me transportam às portas de embarque olho para trás, para estes dias, e sinto o enormíssimo orgulho de me terdes por vosso amigo.

Finalmente, vós os três. Chegou a hora e com ela as lágrimas de nos apartarmos. Ou então, elas vêm pelo simples facto de um dia me ter convencido, num momento capaz de transladar o curso da existência, que se a vida não valer por mais nada, já valerá tudo se gostarmos muito de alguém.

Estas palavras, por vezes propositadamente incompletas, sibilinas e encriptadas, não são um choro mimalho ou contrafeito, não são um balido jactancioso sob a luz dos holofotes. Se assim fosse, teríamos uma nuvem vituperiosa sobre quem as diz e de quem se diz. São, antes, o registo emotivo e simples de um sentido obrigado perifrástico. Em verdade, há dívidas que, embora não possam ser pagas, devem ser reconhecidas. E muito se diz quando muito se deixa por dizer.

Envolto na escuridão já avançada, contemplo esta fortuna de tão pouca gente achar que eu lhe devo e de eu achar que devo a tanta gente. Segundo uma premonição antiga, companheira desde os tempos de adolescência, daqui a muitos anos, dois velhos homens estarão sentados à beira de uma falésia, desfrutando do mergulho do Sol primevo no oceano vasto e azul. As cadeiras serão de palha gretada mas confortável. Um deles, com a cara enrugada e marcada, olhará para trás. Verá uma planície verde e fulgurante, onde a vida nasce, se embeleza e morre. Ficará tão deslumbrado que desta vez não conterá uma lágrima límpida e mais salgada do que o habitual. Em seguida, a nostalgia, esse lamento de já não sermos quem gostámos tanto de ser, tomar-lhe-á num repente o coração, e nesse instante recordará o passado em cada um dos seus mais belos pormenores. Assoberbado de emoções, olhará de novo para a frente e fitará uma vez mais o maravilhoso astro ígneo que se apaga na água cristalina e ondulante. Cerrará levemente os olhos para evitar a lesão das lanças flamejantes da mais firme luz alguma vez vista, meneará a cabeça fatigada, e num lampejo de lucidez único, dirigindo-se a si, ao seu companheiro e a tantos outros que passaram, dirá num sussurro lento “Fomos lindos!”.