Friday, January 26, 2007

Ode Fraterna - 19.12.2006 a 6.1.2007

“As pessoas são pessoas através de outras pessoas”
Provérbio Xhosa

“Sabe-lo, mas lembrar-to não é despiciendo. Amei-te enquanto exististe, amar-te-ei enquanto existir. Amei-te quando ainda não tinhas nome para te chamarem, amar-te-ei quando já não fizer sentido chamar-te. Esta é a importância do teu nome...”
Incógnito

O majestoso avião da TAP aterra finalmente no Maputo. Para trás, a 10.000 Km., ficam momentos de alegria reconfortante, para a frente, novas histórias, aventuras e lições, aqui e para sempre, memórias vivas lacradas pela amizade, porque se a vida não valer por mais nada, já valerá tudo se gostarmos muito de alguém.

As rodas trementes mas eficazes do carro bagageiro avançam paulatinamente pelo chão baço do aeroporto da Portela. É farto o cansaço de quem imprime o movimento a este veículo. Como é certo e sabido, não pode o empurrado adiantar-se a quem o empurra. E ai dele se o faz, pois arrisca-se a perder o empurrador e depois nem daqui para ali nem dali para acolá. Vislumbro finalmente estes dois que se o não fossem também eu o não seria. E uma festa serena apodera-se de cada coração, ascende à cabeça e desce ao estômago, e sem se saber porquê, sustém-se aquela lágrima ou suspiro que mostraria o evidente: é muito grande esta alegria de vos reencontrar.

E logo começou “Estás mais magro.”, “Estás cansado?”, “Dormiste?”, “Tens fome?”, “Deves descansar.”. No lar, fez-se este almoço ao qual chamam pequeno, falou-se e comentou-se, entrecruzando e misturando conversas, como sempre acontece naqueles momentos em que todo o tempo do mundo seria insuficiente para dizermos tanto quanto queremos.

Pela noite chegaria o jantar, com estes muito estimados, cada um na sua forma, porquanto todos temos a nossa. Uns mais absortos, outros mais dados ao extravasamento, estes dedutivos e aqueles mais indutivos. Saber como foi, o que foi, se a experiência é rica, se desilude ou surpreende, “Posso sugerir?, Dar uma ideia?”.

Almoçamos, ao segundo dia. Tantos rostos jovens e esperançosos. No círculo da entrada, abraçamo-nos, e quão fortes são esses amplexos, e que felicidade é a de nos envolvermos nesta celebração do reencontro e da benquerença, quem sabe, aqui e ali, da mais fecunda e autêntica fraternidade. Na mesa comprida, as palavras flúem para trás e para diante, entre piadas e remoques, comentários e saudações, enche-se o estômago de alimento e a alma de vós.

Ao jantar, sonorizado por um idioma irmão, é a ti quem vejo e observo, aproveitando os minutos, ainda no seu começo, mas já frugais para tanto fazer e dizer. Ali, numa pequena mesa quadrada, num albergue iluminado por uma luz bruxuleante, somos profusos em promessas diversas daquilo que será ou há-de ser. Sonhando com um futuro de caminhos sobrepostos, na berma dos quais se pavoneiam lustrosos alecrins, jovens acácias em flor e nobiliárquicos ulmeiros. E do mais se não fala, pois nem tudo pode ser dito e muito menos pode ser escrito.

Um breve almoço de arroz feito, no qual vos reencontro, só para vos saudar, para perguntar “Como está?”, para ouvir “Tivemos saudades tuas.”.

Encontro-me convosco para darmos vazão a esta torrente que lava a cevada e conversarmos sobre como tem sido. E não fomos moderados em alguma das tarefas. Enlevados e de coração ao alto, lá jantámos, numa confraternização cujo registo guardarei até ao fim dos tempos na algibeira das recordações mais preciosas. Perguntam-me com acuidade “Lá, o que é que te faz mais falta?”. E sem rodeios ou falácias de elegância, “São vocês”. No espaço dançante de sempre, onde as nossas pegadas já se encrostam, subo um degrau e outro, retiro-me da confusão, só para apreciar esta sorte.

Dois abraços tão esperados e sempre tão sentidos. Mais reservada e observadora, mais desprendido e poeta. O jantar é especial, pois celebramos o dia do Seu nascimento. Cada qual na sua leitura, cada um na sua festa interior, e somos tantos, muitos mesmo, e tão diferentes, mas a verdade é que todos levantamos o mesmo testo e empunhamos a mesma colher, antes de olharmos para dentro e escolhermos a nossa parte. E de tão rara deveria esta união ser conservada por muito, para sempre. “Sabes o que mais me custa? É de já não termos tempo de assistir à vida desta gente.”. E agora as despedidas, pois só daqui a seis meses nos veremos, e quanto custam…, por serdes tão especiais!

Certo dia, um homem de vida já muito longa falou-me dos seus primórdios. De como perdeu dois irmãos na febre espanhola, de como perdeu outros dois durante a 2ª Grande Guerra. “Meu Deus, como deve ter sofrido a minha mãe… Mas mesmo assim, quando cheguei a casa para comunicar a decisão de partir, disseram-me que seguisse o meu caminho, que não me importasse com eles. E eu era o único homem da família e nós éramos tão pobres. Quando me lembro…” Depois disto, virou a face e adivinho que os seus olhos terão sido toldados pelas águas da saudade e da gratidão. Nestes momentos, vislumbro seres humanos superiores, faias descomunais, belas e sumptuosas, entre sarças desengonçadas e tortulhos decadentes. É distinta, pois, a extensa ramagem destes pais.

Em ti, sentado há já largos anos, sempre descubro a paz e a riqueza de espírito envolvente e marcante, mostrando-me um outro lado da vida, mais profundo e reluzente, onde duas pessoas se encontram e deliciam com o simples prazer de se ouvirem. E de ti, nesse perene exemplo de serviço e abnegação, retiro a prova cabal de uma história singular que não cessarei de contar.

Num rodopiar kitsch buscamos o requinte e a novelle cuisine, nem que seja para podermos fazer pouco desta atitude. E falámos, disto e daquilo, de como faremos os trilhos mais descalços desta África austral.

E a senhora, muito me honra e engrandece com esse “Gostava de o ver.”. Também eu tenho prazer em vê-la.

Os grãos moídos e aromáticos deixam-se regar pela água fervente, sobrando desta harmoniosa cópula uma solução escura e amarga. Á mesa do café, com estes de coragem que decidiram existir e mostrar o quanto valem noutros recantos, ensinando-me esta verdade imensa e intocável proferida certa tarde por um altíssimo presbítero, “O mundo não está todo aqui.”.

O Sol levanta-se preguiçosamente nas vastas planícies alentejanas, combatendo com envergonhado sucesso o gelo da madrugada. Ouve-se o estoiro da rolha de uma garrafa de champanhe e existe alguém que, entre irmãos, festeja a entrada no novo ano dois dias antes de ele se apresentar.

No caminho, ainda paramos nesta terra de vinho célebre, para cumprimentar as senhoras e os senhores. E entre uns mais acalmados pela idade e outros de cinética vincada, garantimos saudades recíprocas e prometemos “Até breve.”.

Nós, tu e esses teus, nos quais deposito tanta estima, celebramos nestas pedras altas o advento de 2007. Pela noite dentro, entre esta e aquela conversa, no meio de um copo e de um abraço, um carinho e um beijo, volto a apartar-me para tomar o peso da minha felicidade. Pois isto do sorriso genuíno é não mais que o resultado de pararmos um momento, olharmos à nossa volta e tomarmos o pulso, sentir a alegria do coração, e deixarmo-nos levar pelo rio jubiloso de estarmos juntos.

Na ombreira da porta fixa-se uma placa onde se pode ler o nome da adega. Lá dentro, um peculiar ajuntamento de homens faz-me anotar que a despedida é sentida e o regresso será festejado. Entre discursos e palavras de ruborescer pergunto-me se não vão os dizeres além do visado. E logo confirmo a hipótese, mas então recordo como aprendi que no fervor da emoção somos levados a engrandecer as qualidades dos nossos amigos, deixando neste eco hiperbolizado de adjectivação a prova cabal do quanto gostamos deles. Estoutra senhora, a mais entusiasta ouvinte dos Relatos da Nigrizia, que depois de recolher com sofreguidão histórias e historietas, me diz, com um encorajador brilho nos olhos, “Vá, realize-se por mim e por si!”.

A estes me junto para celebrar o maravilhoso milagre da geração, da continuidade, desta arrepiante bem-aventurança de se poder dizer “Aqui está uma parte boa de nós.”.

Um reencontro convosco. Porque muito me ensinastes e em passos não raros mostrastes como se pode respeitar e dar a quem ensaia os primeiros passos. E assim, sinto-me compelido a aparecer para vos saudar.

E vós, há minutos no mesmo assento e hoje dispersos por ali e por aqui, mas, mesmo assim, juntos no reconhecimento de que algo de muito valioso sobrou de almoços e cafés circunstanciais. E não raras vezes ouvi-me dizer “Foi aquele gajo quem me ensinou a fazer a isto!”.

Este Senhor, a quem devo parte da vontade de ser melhor. Quão profícuo terá sido só mais tarde saberei, só quando avaliar a vida e o percurso seguido, só neste balanço poderei conjecturar sobre o menos que teria sido se ele me não tem dado a mão.

Uma breve refeição com os de ontem e outros mais, antes de partir para o aeroporto. A saudade já se apodera fielmente do coração e da firmeza das mãos.

Um telefonema único, daqueles dois especialíssimos. Entre beijos e “Toma cuidado, come e manda-lhe um grande abraço nosso.”, ouço de uma voz rouca “O tempo é um cavalo que foge…”.

Junto do balcão do aeroporto, despacho a bagagem e marco assento no avião. Entrementes, uma voz feminina confidencia-me ao ouvido “Nem sabes quantos estão ali para se despedir.”. Olho para trás e vejo o notável aglomerado de tantos que ainda se incomodaram a gastar o último minuto para dizer até logo. Abraços, beijos, despeço-me, e enquanto as escadas rolantes me transportam às portas de embarque olho para trás, para estes dias, e sinto o enormíssimo orgulho de me terdes por vosso amigo.

Finalmente, vós os três. Chegou a hora e com ela as lágrimas de nos apartarmos. Ou então, elas vêm pelo simples facto de um dia me ter convencido, num momento capaz de transladar o curso da existência, que se a vida não valer por mais nada, já valerá tudo se gostarmos muito de alguém.

Estas palavras, por vezes propositadamente incompletas, sibilinas e encriptadas, não são um choro mimalho ou contrafeito, não são um balido jactancioso sob a luz dos holofotes. Se assim fosse, teríamos uma nuvem vituperiosa sobre quem as diz e de quem se diz. São, antes, o registo emotivo e simples de um sentido obrigado perifrástico. Em verdade, há dívidas que, embora não possam ser pagas, devem ser reconhecidas. E muito se diz quando muito se deixa por dizer.

Envolto na escuridão já avançada, contemplo esta fortuna de tão pouca gente achar que eu lhe devo e de eu achar que devo a tanta gente. Segundo uma premonição antiga, companheira desde os tempos de adolescência, daqui a muitos anos, dois velhos homens estarão sentados à beira de uma falésia, desfrutando do mergulho do Sol primevo no oceano vasto e azul. As cadeiras serão de palha gretada mas confortável. Um deles, com a cara enrugada e marcada, olhará para trás. Verá uma planície verde e fulgurante, onde a vida nasce, se embeleza e morre. Ficará tão deslumbrado que desta vez não conterá uma lágrima límpida e mais salgada do que o habitual. Em seguida, a nostalgia, esse lamento de já não sermos quem gostámos tanto de ser, tomar-lhe-á num repente o coração, e nesse instante recordará o passado em cada um dos seus mais belos pormenores. Assoberbado de emoções, olhará de novo para a frente e fitará uma vez mais o maravilhoso astro ígneo que se apaga na água cristalina e ondulante. Cerrará levemente os olhos para evitar a lesão das lanças flamejantes da mais firme luz alguma vez vista, meneará a cabeça fatigada, e num lampejo de lucidez único, dirigindo-se a si, ao seu companheiro e a tantos outros que passaram, dirá num sussurro lento “Fomos lindos!”.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

pelo menos tentamos

grande abraco

2:58 AM  

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