Wednesday, December 06, 2006

Moçambique Adentro - 14.11.2006 a 18.11.2006

E do Maputo lá partimos para Nampula, eu e o meu pai. No avião, ao nosso, lado está uma senhora com cerca de 65 anos. Tem um aspecto simples e agradável. O meu pai, com a espontaneidade do costume, pergunta-lhe logo de onde é, para onde vai, o que faz, e, mais arrojo ainda, quantos anos tem. Sorrindo, “Uhmm, já tenho muitos, muitos, já sou muito velha. Tenho aí uns 30.” Não sabe qual é a sua idade, e isso é muito comum entre esta gente. Para quem, como nós, se habitua a contar os minutos e os segundos, as horas e os minutos, os dias e as horas, os anos e os dias, para esses, dizia, esta ignorância só pode despertar um sorriso enternecido. Mas será que saber quantos anos já vivi me permite saber quantos hei-de viver? Será que a idade me diz quanto posso e como posso fazer? O tempo e o espaço são os grandes referenciais da vida quotidiana, dos projectos futuros, das memórias passadas, mas aqui os seus contornos são mais incertos, o seu significado é mais sibilino e a sua utilidade mais duvidosa.

O Arlindo, com gentileza e amizade, disponibilizou-se para nos mostrar alguns dos belos lugares da província de Nampula.

Avançamos pela estrada entre Nampula e Nacala. Estará ao nível das nossas estradas nacionais. Mas já é um grande avanço. As vias são um determinante impulso para o desenvolvimento. A riqueza da humanidade, a material também, provém da cooperação, da coexistência, de sermos muitos e de nos encontrarmos, de coincidirem tantas das nossas necessidades e de divergirem tanto as nossas capacidades. É por isso que o isolamento nos faz minguar, embrutecer, empobrecer. As acessibilidades aproximam-nos, tornando-se não a riqueza em si mas um dos instrumentos para alcançá-la. São grandes as esperanças correctamente depositadas nesta estrada. Hão-de confirmar-se. Dirigimo-nos a Nacala. Na orla da estrada dispõem-se muitas palhotas de adobe e capim. Ao longo de 190 quilómetros, pessoas e mais pessoas. Alguns gozam, sentados, o refrescante crepúsculo. Mamãs, com bebés às costas sustidos pelo tecido colorido e resistente das capulanas, debruçam-se sobre a terra da machamba, onde depositam grãos de milho, os quais, depois das primeiras chuvas, hão-de medrar e servir de alimento. Outras, depositam as forças e o tempo no sobe e desce ritmado do gigante pilão, que cai pesado sobre a mandioca contida no largo almofariz, provocando a desagregação, produzindo a farinha, a base alimentícia de 70% da população moçambicana. Ao aproximamo-nos do litoral, a terra vai aplanando, os embondeiros tornam-se mais frequentes, bem como aquelas pequenas árvores de tronco esguio e ondulado, com uma bonita copa convexa e achatada, tão comuns nas paisagens africanas mais difundidas. Na berma da estrada, crianças e jovens que vendem mangas e castanha de caju expõe o seu produto aos viajantes, na esperança de trocarem por dinheiro os filhos das árvores.

Noutra ocasião, perguntava-me o Arlindo “Quais são as perspectivas de futuro desta gente que vive distante da cidade?”. De facto, o seu universo é estreito, contido num recipiente acanhado. Cruzaram-se com a tecnologia quando um familiar da cidade trouxe de presente um rádio. Foi um passo significativo, pois assim acercaram-se mais um pouco. E estes são privilegiados, porquanto a proximidade da estrada e da linha de comboio lhes explica que há gente a ir e a vir, um mundo aquém e outro além, e isso já muito. Mas se estes se podem encostar e tocar com o nariz no curto horizonte, o que fará daqueloutros perdidos no mato, onde não chega a electricidade, o telefone. A vida desta gente é, desde o início, trabalhar a terra com fraca arte, colher o que a terra dá, pouco fazendo para que ela dê alguma coisa, fazê-los, dar-lhes luz e criá-los, calcados por uma tradição tantas vezes carcerária e difusora de medos. Vivemos nestes hectares, o dia a dia, até ao dia do soçobro, o nosso espaço não pertence a este tempo.

Nacala é uma cidade litoral, proprietária de um dos mais magníficos portos naturais deste planeta e seguramente o melhor de Moçambique. Este albergue de quem anda sobre o mar, com os olhos postos na Índia, um dos maiores mercados do mundo, goza de uma localização geográfica digna de criar inveja. Sito numa bonita baia, beneficia da profundidade e do sossego das águas, as quais assim permanecem até à costa, permitindo aos grandes barcos, batelões, escaleres, chalupas, às barcaças e aos navios, um atracar perfeito. A cidade, em sentido próprio, inicia-se numa encosta que vai descendo até ao mar. As suas dimensões são reduzidas. Alguns edifícios, algumas casas de considerável luxo, e, muito bom, uma razoável quantidade de indústrias. Nos arrabaldes, um grande aglomerado populacional junta-se, ocupando palhotas ou casebres, interessados na riqueza e nos postos de trabalho dados à costa pelo pacífico ondular do Índico. Fica a sensação da existência de dinheiro a circular neste lugar. São os benefícios dos portos, das alfândegas, dos armadores, da exportação, das empresas que, inteligentemente, se avizinham dos pontos de contacto com o exterior. Pela primeira vez, desde a chegada, sou invadido por uma profunda esperança no avanço deste país. Se não se criarem distorções interesseiras, Nacala virá a ser uma grande cidade de África, um motor de crescimento para o norte de Moçambique, um zéfiro marítimo de progresso e bem-estar espalhando-se em direcção ao mundo. Esperemos pois que o desenvolvimento seja sustentado, a meritocracia presida à distribuição da riqueza, e, não menos importante, haja vontade de trabalhar bem, com seriedade, sem improvisos, com planos cumpridos, com espírito comunitário. Tudo visto, também nós zarpámos em direcção a outros portos.

Chegados à entrada da ponte, observamos, a cerca de 3 ou 4 quilómetros de distância, o que terá sido um lugar de fadas, dos mais belos desta terra, ainda hoje património da humanidade, a cidade que Italo Calvino gostaria de ter inventado e descrito. Atravessamos a ponte estreita e pusilânime, onde não cabe mais de um carro. As obras de beneficiação em curso fazem pressentir a sua antiguidade. Entramos, finalmente, neste fabuloso paraíso. No início, logo encontramos os habitantes do arquipélago metidos em azafamados mercados. As intermináveis filas de panamás de capim dispõem-se sobre os fracos tijolos de areia, explicando-nos que antes da cidade de cimento, colonial e lusitana, está outra mais modesta. Muitas pessoas fugiram para este local durante a guerra e agora pretendem permanecer. Veio a Unesco e construiu em terra firme uma pequena cidade com escolas e hospitais, casas e casinhas, óptimas condições para começar uma vida. Mas isto de uma pessoa se acostumar ao seu lar tem que se lhe diga. São os cantos e os varandins, as rachas e os cheiros, até os buracos das telhas, tudo gera intimidade, cumplicidade, hábito, e depois é o cabo dos trabalhos para dar um passo, mesmo quando, objectivamente falando, seja um passo para melhor. Ultrapassado o primeiro departamento, mergulhamos na antiga capital de Moçambique. Uma cidade de edifícios baixos mas airosos, com varandas de mármore trabalhadas. As ruas são ruelas, estreitas e pitorescas. Todavia, as casas estão muito degradas, sendo apenas possível saboreá-las no nosso imaginário e não apreciar o quanto são. Mas assim como é preciso imaginar Sísifo feliz, também é necessário pensar estas quase ruínas rebocadas, pintadas, cobertas por telhas escarlate de barro cozido. Só assim, através da fantasia, é possível recuperar e gozar a magia e a beleza singular deste lugar. Deparamos com a estátua de Camões. O príncipe encontrou aqui inspiração e pouso adequado para potenciar a sua genialidade e escrevinhar parte dos Lusíadas. Visitamos a bonita casa onde um dia habitaram os vários governadores de Moçambique. Alguns edifícios estão em processo de recuperação, produzindo-se assim um lampejo de esperança, uma crença de que este ainda voltará a ser um dos locais mais belos do mundo. Almoçamos em saudável confraternização à beira mar. Regressando à procedência, atravessamos, novamente, a antiga ponte entre o céu e a terra, deixando para trás aquela que é, devida e indevidamente, a famosa Ilha de Moçambique.

Calcorreámos 30 quilómetros de picada inóspita, por entre os já corriqueiros cajueiros, as familiares mangueiras e os sempre peculiares embondeiros, até chegarmos à missão da Mueria. São quatro os edifícios principais. Do lado esquerdo, a casa dos missionários, atrás da qual se queda o lar de raparigas estudantes. No meio, a escola, e, do lado direito, o centro de saúde. Nos tempos, este último era a casa dos padres, mas depois da independência e das nacionalizações foi feito casa de doentes e de curas. Não conheci um missionário revoltado com este desapossamento, “Se fizerem um bom uso, por nós está tudo bem”. E, penso eu, é o que acontece neste caso. O centro de saúde está ao serviço dos pobres e entre o pessoal médico e os religiosos reina um bom espírito de convívio, cooperação e entendimento. A irmã Maria, muito gentil, bondosa e serena, leva-nos a visitar os locais mais interessantes. Na fachada do centro de saúde destaca-se um alpendre sustido por quatro robustas colunas. Sob este abrigo, uma mamã entrega a sua mama a uma criança chorosa e nua, ávida de alimento, a qual, depois de começar a aspirar o leite materno, se tranquiliza e interrompe a reclamação. A directora do centro de saúde tem o conveniente nome de Esperança. É uma enfermeira jovem, alta e bonita, com a pele escura salpicada de sardas negras. Seguindo o seu passo, percorremos as várias salas. Aqui os doentes com malária, ali os nascituros e respectivas parideiras. Não chegámos à ala dos tuberculosos, por não ser certo e seguro o poderio do nosso sistema imunitário. O edifício também está enfermo. O estuque desmembra-se aos poucos, o chão é já irregular e desequilibrado. Não há nada que dure para sempre, salvo se a mão benemérita da continuidade for corrigindo, reparando, alimentando, adiando, enfim, o cumprimento da regra imperiosa segundo a qual tudo acaba um dia. Os medicamentos não abundam, bem como os meios de diagnóstico. Faz-se muito com pouco, ou não fosse essa a sina desta gente. Mas é precisamente isso que nos faz pensar. Pensar na incalculável capacidade do ser humano e em especial dos moçambicanos, nos quais, aos poucos, vou encontrando defeitos graves de mentalidade e postura perante a vida, mas, ao mesmo tempo, qualidades impressionantes, daquelas que nos infundem uma inveja saudável, daquelas que nos dão esperança sobre o futuro da humanidade. Em verdade, todo o ser humano é bom e mau, corrupto e impoluto, leal e traiçoeiro, certeiro e errante, filantropo e avaro, egoísta e despojado, todos, sem excepção de algum, reunimos estas virtudes e estes defeitos. O que nos diferencia não é, pois, a qualidade, mas antes a quantidade. O pendor daqueles defeitos e daquelas qualidades na nossa conduta define-nos e diz, a nós e aos outros, quem somos afinal. O ser humano é, assim, a maior contradição da história. E isto tem um respingo conclusivo que nos perfura como uma bala impiedosa: em verdade, não há quem seja absolutamente bom e, mais importante, não há quem seja absolutamente mau. Devemos pois ter esperança e continuar a acreditar na humanidade e, em particular, neste país, onde coabita o preguiçoso inveterado e o lutador sem armas, mas vencedor.

Assim termina este capítulo de aprendizagem e conhecimento, desta feita perfumado por uma especialíssima companhia, tão profundamente espiritual e amiga. Da varanda do aeroporto, eu e o Arlindo observamos o avião da LAM atingir a velocidade da descolagem e, num testemunho de maravilhosa engenharia, levantar voo em direcção a Maputo.

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