Tuesday, April 15, 2008

O ÚLTIMO DEGRAU - 02.06.2007 a 06.06.2007

Sentado no cadeirão de madeira que se instalou na varanda da casa dos Missionários Combonianos, faço uma contemplação emotiva da rua larga, irregularmente alcatroada, mas airosa, sem falta, em partes destroçada por raízes de acácias irreverentes, que, na aflição escura e rarefeita do interior da terra, removem com violência e estrondo lento o cimento que as oprime. É esta a minha última noite em Moçambique! Tudo o que começa acaba. Não nos consolam essas teorias primárias da filosofia grega, segundo as quais tudo se gera por tudo, o que há sempre houve e há-de haver, não existe efeito produzido por uma só causa nem causa que produza um só efeito. O delicado cesto de vime onde guardamos os sentimentos é muito menos abstraccionista e adopta uma estreita visão da universalidade. Sabe, e talvez esteja certo, que não se repetem os magníficos momentos passados, nem se transformam noutros semelhantes. É por isso que as almas choram, por se despedirem da felicidade. Paga-se com a dor da despedida a alegria da chegada e da estada, é uma fatalidade da nossa condição. Lembra-te que o bom e o mau, a tristeza e a alegria, o amor e o ódio, são duas faces da mesma moeda, que se alimentam incessante e mutuamente, pois cada uma pressupõe a existência da outra.

É a minha última noite em Moçambique, mas o adeus começou há uma semana.

É Domingo. Tratando-se do último fim-de-semana nesta Terra, decido percorrer a cidade a pé. Fazer uma caminhada longa e extrospectiva, proceder àqueles estudos observatórios nos quais damos connosco a reparar nas imperfeições dos edifícios, na profundidade e significado de momentos banalíssimos, no chilrear beijoqueiro dos pássaros, na singularidade das pedras, nas pitorescas conversas dos transeuntes. É dia de mercado em Nampula. Desloco-me às imediações do mesmo e sou detido por uma curiosa livraria de rua. Num lençol violeta de tecido sintético estendido no passeio, um distinto alfarrabista gere trinta livros, os diários e alguns semanários. Expõe muito do conhecimento disponível nesta cidade, onde não existe um estabelecimento comercial dedicado somente à venda de livros. À volta do pano, junta-se uma reduzida casta de interessados, literatos, porventura intelectuais, como se diz. Paro, deito uma vista. Mas no momento em que me debruçava para analisar um compêndio de provérbios macuas, os ouvidos detectam um solene e erudito diálogo. Dois homens, um jovem e outro de meia-idade, encontraram naquela livraria o lugar ideal para discorrerem sobre assuntos de política social com a maior acuidade. O mais velho, numa professoral entoação “Hoje em dia, tem muita gente a ir para a França, Alemanha e toda a Europa.”, o mais novo, assentindo à constatação e querendo arrimar a sua sabedora embarcação, “É verdade, pá, e África do Sul também.”, e o professor, “Não, eu estava a falar da Europa.”, e o aluno, “Sim, sim, Europa, como Suécia e Canadá”. Tratada com acérrimo vigor estatístico e perfeito rigor geográfico a questão da emigração, importou nessa ocasião reflectir e proferir larachas pertinentes sobre a migração. O professor, “E também tem muita gente a vir do mato para as cidades.” O mais novo, que nesta altura já tinha reconhecido a superior cultura e informação do seu interlocutor, indagou, semicerrando as pálpebras e fazendo ares de quem prepara uma questão relevante, “Acha, nesse caso, que podemos falar de fuga de cérebros?”

Continuei a caminhada. Deambulei pelo mercado, onde se vende tudo quanto existe. Rádios e telefonias, capulanas e vestidos, sapatos e peúgas, cintos e fitas, cadeiras e aparadores, sofás e cortinados, sorrisos, sonhos e ilusões, como sempre acontece nas feiras dos pobres. À saída, sou interpelado por um polícia que, arrogantemente, me solicita o passaporte. “Ó senhor polícia, o passaporte está em casa.”, “É pá, você não sabe que tem de andar com o passaporte?”, “Tem razão, mas vim só dar uma volta, e não me lembrei.”, “Então vamos ter que resolver isto…”. Enquanto me sugeria que o corrompesse com 3 ou 4 euros, punha a cabeça numa girândola para detectar algum transeunte menos conveniente àquele momento. “Olhe, nem trouxe carteira, para lhe dizer a verdade”. Quando mentalmente decidia se havia de ir até à esquadra com o distinto agente ou ceder e alimentar de vícios aquele miserável espírito, surge um aluno que me identifica com amizade, demove o polícia, e sigo em paz. Há um provérbio repetido por estas paragens segundo o qual o cabrito come onde está amarrado. E sabe bem ouvir as legitimações envergonhadas daqueles que dizem “Se não for eu, são os outros.”, “Eles também roubam, por isso…”, “De outra forma um gajo não se safa.”, etc. Aldrabar, mentir, corromper, cunhar, burlar, influenciar e por aí adiante, ainda se suporta, mas encontrar nisto virtude ou fatalidade, inteligência e orgulho, isso é que tresanda a torpeza imunda. Ou alguém duvida que por trás do esquema e do negócio conspurcado, das cunhas e das influências, da subtil privatização do interesse e bens públicos estão as crianças pobres, a morrer de fome, os doentes ignorados e os injustiçados? Mas o Homem convenceu-se de que os seus pequenos pecados não afectam ninguém e de que as suas virtudes, isoladas, não tornam o mundo melhor. E perante o algoz sou eu, o acusador, quem pede justiça e, à frente, solicito a minha execução. Suma estupidez, Maior hipocrisia!

Dois dias antes da partida, desloquei-me ao orfanato das irmãs da caridade. São sessenta ou setenta crianças, algumas doentes, outras, simplesmente abandonadas, excluídas. Era aqui que vinha quando, desesperado com os resultados da minha passagem por Moçambique, procurava um significado para estes tempos. E, sem dúvida, o sofrimento das crianças é a única injustiça completa, o último reduto para amolecer a maldade e destronar o desalento. Entro no berçário e uma das irmãs atira-me para o colo uma criança de meses. Esquelética, pele engelhada, baça, pendurada nos ossos, olhos arregalados e cabelo enfraquecido. “Trouxeram-na ontem, foi abandonada pela mãe. Está muito mal, mas vai viver, com a graça de Deus”. Foi este, e não outro, o momento mais relevante da minha estadia em Moçambique. Foi à procura dele que vim, na esperança de ter junto ao peito, num soluçar descompassado e lânguido, o ser humano mais indefeso do mundo, e lembrá-lo para sempre, receber a certeza inquestionável de que vale a pena viver. Canso-me de vos ver correr, acredito de vos ver acreditar, dou comigo neste limbo onde franzo o sobrolho àqueles para quem tudo é acaso, pois tanto acaso é acaso a mais, e sorrio complacentemente perante aqueles que vêem no mal a liberdade dos homens e no bem a mão de Deus.

Passei pelo mercado, uma última vez. Comprei as bananas, mas não me despedi dos miúdos. Não criei mais do que uma relação comercial com eles. Dou-vos fruta e, em troca, dais-me leveza de consciência. É isto que procuramos. Dizia-me o Arlindo, em tempos, “As pessoas têm uma boneca sem pernas, e toca de mandá-la para os pobrezinhos de Moçambique”. Esta postura face à pobreza, tão cara para nós. Miserável daquele que se engrandece por dar aquilo que lhe não faz falta! A verdade é que nós, humanos, nos perdemos em algum momento da história, ou, talvez melhor, ainda buscamos a nossa humanidade. Hodiernamente, os referenciais valorativos situam- -se na verificação do não ser. Ninguém pretende ser bom, mas apenas não ser mau, nem ser justo, mas apenas não ser injusto, nem ser excelente, mas apenas não ser mentecapto. É a axiologia do negativismo, em que o ser se desvaloriza e o não ser se enaltece, “Desde que passe…, só quero é que não se drogue…”. Alguns entre nós pensam que se definem por quanto fazem. Enganam-se. O nosso valor determina-se pela subtracção daquilo que fazemos por aquilo que se pode, legitima e razoavelmente, esperar de nós. Quando o resultado desta operação for positivo, poderás, sem vergonhas, finalmente, respirar o ar, pois já o mereces.

Último dia na Faculdade. Depois da entrega dos exames, alguns alunos tomam a palavra para proferir dizeres sobre o nosso encontro. Tendo eles um percurso académico tão seviciado, bastou cumprir a minha obrigação para lhes alimentar a sede de justiça e equilíbrio, de seriedade e empenho. Afinal, a lanterna de luz ténue é um clarão na escuridão absoluta. Guardarei sempre com saudade amiga o tempo da nossa convivência.

A caminho de casa, encontro o ancião de Gimo. Pergunto-lhe de onde vem. “Xi, eu vem de longe!”, “Andou quantos quilómetros?”, “É pá, andei 7 quilómetros”, “E demorou quanto tempo?”, “Demorei 15 minutos”. Gato escalfado tem medo de água fria, mas com presunto e ervilhas fica muito saboroso. Parvo sou eu por não ter compreendido que este povo não precisa de tempo e espaço para saber onde está e para onde vai.

Finalmente, em casa dos missionários. Pela primeira vez, assisto à missa diária do final de tarde. O Arlindo agradece a deus a minha presença naquela casa e eu, interiormente, agradeço-lhe a ele em particular, e aos Combonianos em geral tanta amizade e consideração. A dedicação, a tolerância, o exemplo, tantos momentos de novidade e aprendizagem, enfim, uma dívida incomensurável que o credor não reconhece e o onerado não esquece.

A liberdade só se atinge através do sacrifício. Tudo tem quem nada quer. Suponho que todos saibamos que não podemos mudar o mundo. Mas a verdade é que há entre nós quem tente. Mais uma vez, será necessário imaginar Sísifo feliz.

Já subi o primeiro degrau desta escada infindável. Antes de entrar no avião, olho para trás, respiro pela derradeira vez o ar húmido e tépido que paira bonançoso sobre esta terra. “Obrigado, levo-te comigo”.

A fonte da preciosidade é a escassez. Por isso não devemos pretender ser eternos. O sorriso forte e os olhos rasos de água só encontram justificação na raridade ou unicidade do momento. Para se ser feliz é preciso ter consciência ou subconsciência de que um dia se morre e tudo acaba.

Adeus, Moçambique!

Wednesday, December 19, 2007

O Ângulo do Enfermo - 07.02.2007 a 31.09.2007

Perguntei-me, antes de escrever este texto, se deveria escrevê-lo. No início deste diário, se me recordo com precisão objectiva, era a fonte quem bebia a água. Mas depois o registo tornou-se público, há quem diga que lê, e compreende-se que o autor tenha mais cautelas. Não fosse este um veemente defensor das suas incongruências, incompletudes, defeitos e outras maleitas do espírito. Por isso, pode entender-se o receio de que esta historieta finde no ridículo choro da vítima, mas se isto não é mais do que um pedido de perdão…

Há gente que só vê aquilo em que acredita. Outra casta, só acredita naquilo que vê. Alguns sonhos de olhos abertos ou pálpebras fechadas ao sonho. Um balde de justiça e verdade destila sob o calor próspero do verão sufocado por nuvens. A oftalmologia é ciência de pouca monta para explicar convincentemente este prodígio da cromática, esta fenomenologia estonteante através da qual o branco se convolou em negro, a paz em guerra, a certeza em dúvida. É a fraqueza do espírito e pobreza do coração, que à primeira adversidade se revoltam e exigem recompensa, afirmam sobre pés juntos que não merecem fortuna tão rançosa. Havemos de lamentar a incapacidade de alguns no tocante a compreender a metamorfose do objecto da visão! Não percebem que os contornos e as arestas, as cores e as curvas, as sombras e a claridade, tudo o que a visão alcança depende do ângulo que o espírito ocupa. Alguns perceberão, tarde ou cedo, que os olhos são servos manietados e esculpidos pelo córtex visual. E esses, convencidos de possuírem ciência maior, dirão num suspiro sobranceiro “Se pretendes ser rigoroso, nunca me digas o que está ali, diz-me apenas o que vês ali”.

O despertador irritante sonoriza com vigor o raiar do dia. Mas a noite sonolenta já foi intensamente espertina. Os intestinos corroboraram um presságio assente segundo o qual “Alguma coisa não está bem”. O meteorismo exacerbado é tão irritante como evidente, pois o ruído flamante das vísceras é compassado por uma flatulência sinfónica. Os arrepios num dia de calor. Levanto-me e dirijo-me à sentina para exterminar as incertezas. Conta-se que uma criança pobre, cuja lhaneza não carece de averiguação, terá dito “ Ó mãe, não sei o que se passa, mas estou a mijar pelo cu”. Depois de três ou quatro descargas, chego à mesa do mata-bicho sem apetite e afadigado. Logo os bons amigos me recomendam arinate e fansidar, agressores eficazes das malárias mais recalcitrantes. Seguem-se as análises em laboratório acreditado, que estranhamente negam o diagnóstico tão cabalmente palúdico. Não há razão para alarmes, nem para arriscar. Meia dúzia de pílulas e cama durante dois dias. Até que o corpo se refez parcialmente, o suficiente para regressar à faculdade, às aulas.

As melhoras foram como o Sol do Inverno e a chuva do Verão. Agora, quase a entrar em Março, chegam os enjoos, as náuseas, os pruridos anais, e outros incómodos com os quais o enfermo se não coaduna e dos quais não se gaba. “Toma mais estes catorze comprimidos que isso resolve- -se. Devem ser alguns parasitas que te andam a chatear”. Cumpro a rigor os conselhos de uma irmã, freira e enfermeira, que, segundo se diz, nos tempos de guerra pôs ao serviço de ferimentos e amputações tudo quanto se lhe podia exigir e ainda mais. Quem vem a estes lugares para trabalhar é chamado a ir além do que sabe, a deitar a mão a tudo e a todos, a fazer das tripas coração, a fazer alguma coisa de nada. Certa vez, em Portugal, perguntei a uma senhora de posses modestas o que pretendia ela fazer do meio quilo de petinga que acomodava num saco translúcido. “Vou fazer uma caldeirada para o meu homem!”. A voluntariosa mas franzina e canastreira sardinha, disfarçando os olhos baços, a figadeira decomposta, lá se fez passar por safio e raia, quem sabe por garoupa e cherne, entre batatas, tomate, pimentos e cebolas, até ser caldeirada.

E assim cheguei ao final de Março, entre avalanches nauseabundas, tantas vezes inesperadas. Certa vez, enquanto explicava essa questão pertinente da qualificação em Direito Internacional Privado, “Esperem aqui um pouco, que tenho de ir ali dar um recado a uma senhora”. Decidi então pesar a minha elegância e reparei nos 68 quilos que eram 78 quando aqui cheguei. O bolo só se compõe definitivamente quando, no topo, lhe pomos a cereja. O ser humano razoável, quando atacado por dores e más disposições, percebendo que pouco mal nos pode intrujar quando temos 26 anos, diz “Isto logo passa”. Outros, felizmente uma cómica minoria, interpretam o mais leve padecimento como uma manifestação de doença, algo que merece tratamento. No seio destes, vive uma espécie ainda mais preciosa, assustadoramente grotesca, não fosse a amplitude do cavalheiro, quase quixotesca, que antes de balbuciar “Ai!”já está a abrir a enciclopédica médica para saber o quanto está mal. Ora, esta gente crê que uma dor de barriga é um sintoma de cancro no estômago, a cefaleia, um tumor no cérebro, um braço dormente, por causa da esclerose múltipla, uma arritmia antes da paragem cardio-respiratória. Iniciei este périplo com doze anos, com uma apendicite aguda que nunca tive, e hoje, catorze anos passados, pelo menos durante dois ou três dias, já tive boa parte das doenças fatais conhecidas pela ciência. De modo que, se não se pode pôr um alcoólatra na guarida de uma adega, muito menos se pode rogar paciência a um hipocondríaco agudo que perde 10 quilos em mês e meio.

Decidi ir ao médico. O consultório do respeitado clínico é uma pequena divisória de um laboratório de análises sito numa avenida destacada de Nampula. Consultei-o por 500 Meticais (15 euros), algo perfeitamente inalcançável para um salário mínimo nacional que não ultrapassa os 1200 Meticais. Mas sendo eu tão branco, tão bem posicionado nesta escala patrimonial, não tive nem vi problemas em despender o que a outros faz falta. No sufoco, já não fui tão farto em incendiados discursos sobre a repartição das riquezas, ou então convenci-me de que a solidariedade é bem mais do que um palavreado demagógico como os que envergo tantas vezes. Apalpações e perguntas de diagnóstico, e ali se sentenciou “Isso é uma ameba. Com estes trinta comprimidos, bebidos num copo de água açucarado para a boca não amargar, em breve estará como novo”. Certo homem estava corrosivamente perdido numa montanha elevada. Pretendendo saber como regressava à base, questionou um raro transeunte sobre qual seria o rumo que os seus pés cansados deveriam seguir. Informado, desconfiou do informante, mas seguiu o trajecto sugerido, e quando vacilava por dúvidas fundadas sobre o caminho que trilhava, sempre recordava que a suprema liberdade da escolha só está ao dispor daqueles a quem é oferecida alternativa.

Chegámos a Abril. Depois da proveitosa consulta, saudei esperadas visitas de Portugal. E foi então que entre as desmedidas emoções dos que sacrificaram tempo e dinheiro para estarmos juntos, disparou o alarme “Estás mesmo magro, pá.”, “Devias vir connosco para Portugal.”, “Estás mesmo acabadinho.”, ou prognósticos ainda menos razoáveis e substancialmente mais assustadores. O tormento dos dizeres fatalistas só nos demove quando não estamos a viver o único sonho que tivemos em toda a vida. Mas foram tempos de felicidade inconsiderável. Lembro--me, em certa altura da vida, recordava com frequência a alegria e plenitude do passado, atacado por um saudosismo inato não escolhido nem desejado. E o sofrimento provocado por essa atitude era de tal forma acentuado, que escolhi, antes, certificar-me da felicidade actual. De modo que vivi estes momentos tentando esquecer as maleitas do físico, para aproveitar a palpitante certeza da alma. Em digressão, passámos pela missão do Alua. Uma médica italiana, missionária de alto calibre, empenhada e incansável, aconselhou-me a submissão das minhas gastas e liquefeitas fezes a análises parasitológicas. E foi então que se descobriu um parasita comum nestes lugares. Mais quatro comprimidos, desta feita deglutidos de uma só vez. Todavia, também não foi aqui que o intestino se acalmou, nem o físico se tornou robusto, nem a cura se encontrou. As visitas partiram, mais uma despedida sobre momentos em que a gratidão e a segurança se sobrepôs ao gozo de nos reunirmos.

Até que, alguns dias depois, passados três meses e meio sobre o início da enfermidade, detectei um líquido rubro na esbranquiçada porcelana da sanita, o sangue. Nesta ocasião, fui afectado gravemente por doenças de gravidade imponderável. Comecei por padecer de meningite, passando ao síndrome do cólon irritável, para depois sofrer do síndrome de Crohn, chegando à colite ulcerosa, até que tudo se convolou num avançado e metastaseado tumor do cólon. Perguntaram a um ilustre embaixador como era, enquanto pessoa, a sua lindíssima esposa. Este terá respondido perguntando “Comparada com quem?”. Alguns loucos, considerando-os com esta simplicidade, vêem e têm por real algo que outros não enxergam nem julgam existente. Se é um desvairado aos olhos dos demais, é, na sua óptica, o único lúcido, ou, pelo menos, o escolhido para ter acesso a certo tipo de informação, de perspectiva, de conhecimento. Pouco a pouco, é possível desconsiderar tudo quanto promana de um exterior ignorante, tão néscio e descontraído como a cigarra cantante nas tardes quentes de Setembro. E, assim, o louco afasta-se de tudo quanto o rodeia, isolando-se depois de se certificar que, nitidamente, ninguém pode compreendê- -lo ou acompanhá-lo na sua dimensão da verdade. Ora, muito de quanto é verdadeiro para gentes de honorífico fausto intelectual assenta numa inspiração, a qual não poderia ser demonstrada por um método que resguardasse em si qualquer rasto de científico. E se o método é o caminho do conhecimento, não há gnose sem passos. E saber que do exterior não provenha? E termos por certo aquilo que não vemos nem cheiramos, sentimos ou ouvimos? A tua pele só é macia porque lhe posso tocar? Se é evidente que há loucos e sãos, nenhum mal faz em crermos que tudo quanto embrulhamos na verdade é o espirro de um juízo tão probabilístico quanto relativo. É um excurso esfarrapado e insípido, mas a ele voltaremos um dia, para deitarmos luz a esse mistério profundo resguardado por essa dúvida inatacável, a qual se resolverá no dia em que percebermos se somos num absolutismo relativo, se somos em relatividade absoluta, ou tudo em simultâneo.

Chega a notícia bem aparecida de que a niclosamida, proveniente da França, é o fármaco eficaz para curar a enfermidade. A Elisabeta, médica amiga, concede-me o privilégio raro de aceder ao presumido santo remédio. Com gentileza, o Arlindo, sempre amigo e disponível, cede-me a carrinha para fazer os 400 quilómetros até à missão do Alua. Levo de boleia uma criança belíssima, com a pele negra iluminada por uns nutritivos tempos na companhia das missionárias combonianas. Ficou órfã muito cedo, depois faminta, e foi recolhida pouco antes da morte. Ela está longe da complexa gramática portuguesa e do rico pomar de vocábulos lusos. Cansado do silêncio fatigante da estrada, convido-a a cantar. A sua voz é agradável e infantil, o cantar imaculado e dedicado, a soberania inigualável das crianças pobres e mal amadas. Enquanto ela se deleita em cantares, penso com profundidade “Lá está o intestino novamente às voltas”. E a niclosamida de pouco serviu…

Estamos em meados de Maio. Visito a casa de uma senhora. Jazida no chão térreo da sua palhota, embrulha-se numa capulana debutada pelo uso. Pergunto-lhe por que motivo está naquela prostração aterrante. “Eu tem malária, eu está mal, mesmo”. E, de facto, está. Ela e tudo quanto dela depende, os filhos, os netos, os sobrinhos e outros tantos. A isto acresce que ninguém lhe telefona diariamente de Lisboa para saber como evoluiu a sua débil saúde. Nem tem ao seu dispor cuidados médicos e medicamentosos elementares, no caso de a doença agravar. Na verdade, se morrer, as lágrimas choradas humedecerão a terra, mas não farão despertar o lamento do tenor mais incompetente do planeta. Confesso-me, foi com estranha indiferença, com lamentável repugnância que me afastei da sua enfermidade, temente de que outros males se abatessem sobre o meu, enfastiado com tanta miséria. Afinal, enjoado, atacado por náuseas e palidez repetente, vestido de receios infundados e roupa franca, já não sou tão benemérito, tão comiserado, tão profundamente emotivo e atento.

Aos poucos, a perspectiva sob a qual observo este mundo move-se, envergonhadamente, Eppur si muove!

Dirijo-me ao laboratório para reanalisar fezes, sangue e unira. A senhora insiste para que faça alguns testes a doenças venéreas, pois, na sua opinião, é muito provável que os meus males provenham de algum descuidado comportamento sexual. Insisto que o mal não pode vir daí, mas ela não se conforma. Venço eu, contra a sua desconsolada vontade de me auxiliar. Numa pesquisa mal cuidada e desprovida de rigor descobrem sangue oculto nas fezes. Na minha especializada opinião, confirmam-se irremediavelmente os prognósticos de um achaque que dificilmente ultrapassarei.

Decido visitar outro clínico, recomendado por um aluno interessado. O hospital público disponibiliza aos seus utentes a consulta geral e a especial. Esta última vale 300 Meticais, e dela está economicamente excluída 98% da população. Quando, no início da minha estada em Moçambique, li, no jornal, um impropério a respeito destas consultas, ajuntei-me ao eloquente cronista e vituperei sem piedade este sistema iníquo, em que o dinheiro se sobrepõe à doutrina da igualdade e fraternidade. Apressado, perpasso o labirinto hospitalar até chegar ao modestamente acolhedor departamento das consultas especiais. Faço a minha inscrição no guichet competente. A bem-parecida funcionária interrompe a digitação do trabalho académico para me atender. Agradeço-lha a gentileza. Preenche a minha ficha e, de imediato, cobra as pepitas devidas pela apreciação clínica. Entro no consultório. O médico, cubano, depois de uma conversa longamente intrusiva, de uma apalpação pormenorizada, pergunta-me “Conhece o HIV?”. E de facto, só já me faltava esta. Em Moçambique, estima-se que mais de 16% da população seja portadora do vírus da sida, pelo que a experiência do detective, analisadas as pistas, impeliu-o para o delito mais comum nestas paragens. Recomendou-me então mais um sem horizonte de exames destinados a despistar infecções parasitárias preocupantes.

Quando cheguei a Portugal, tudo não passaria de uma perturbação intestinal de importância reduzida, que um chorrilho de idóneos exames e vastas caixas de comprimidos acabariam por solucionar.

Só se pode sentir sozinho quem já esteve acompanhado. Segundo a regra, quem viu nascer não deverá ver morrer.

Mas são apenas desculpas, as que agora invento, tentando legitimar o egoísmo que me torturou nestes tempos. O medo, infundado talvez, mas alimentado na eternidade das horas de indisposição e de ignorância. Em todo o caso, o que mais me magoa foi a infame rotação do espírito, que, em certas alturas, me convocou para a intolerância, para o esquecimento, para o abandono dos fins e propósitos que me trouxeram junto deste povo. Desculpem-me, pois, por vos ter abandonado, por dá cá aquela palha olvidei o vosso sofrimento, miséria e tristeza. Fiquei e fui ficando, entre tantas dúvidas e receios, mas já não fui tão vosso quanto deveria. Lembro-me que, nesse tempo, dava frequentemente comigo a pensar na morte, na minha e na dos outros, e nunca me recordo de, entre todas estas, ter preferido a minha.

De que servirá morrer por um desconhecido se deus não existir?

Foi assim que descobri o quão distante estive, estou e, quem sabe, estarei do momento perfeito, que idealizo desde cedo, esse minuto sublime em que me desprenderei de mim para te, vos, entregar a minha vida sem reservas, sem argumentação ardilosa e filosófica. Em boa verdade, o desprendimento e a entrega irrestrita pelos outros, negando a própria existência se assim for pedido, não se escreve em compêndios ideológicos de encadernação soberba. Pelo contrário, é simples, irracional, raríssimo e belo, chamam-lhe erradamente coragem, mas trata-se, verdadeiramente, do amor absoluto, e é isso que me falta.

Saturday, September 01, 2007

Acito-te Até que a Morte nos Separe! - 06.05.2007

Voltou a Gimo. Não é um qualquer regresso. É o retorno ao primeiro sítio onde experimentou este negro contentamento. Alvitra-se que não devemos revir aos sítios onde fomos felizes. Talvez tema jogar às costas o fardo de contemplar o passado e lamentar que tudo tenha transitado num ápice. Porventura não quer assimilar que, às migalhas, acorda do sonho lindo que isto foi. A contragosto enfrenta a verdade que o atormenta sem com isso se ralar: o tempo, o supremo e precioso bem, passa num alvoroço de tal monta que não é gente para perceber o pouco que já foi e o quase-nada que lhe resta. Mas regressou. Reviu a vereda ladeada de cajueiros e mangueiras, as leiras de mandioca e amendoim, as crianças lívidas e amistosas, enfim, junto à partida revive os momentos da chegada e tolha-se a saliva no goto, irrita-se a pele desgastada, perturbam-se as movimentos e altera-se a termodinâmica fisiológica: foi feliz aqui e voltou!

É dia festivo em Gimo, com baptizados e casamentos. Engalana-se a comunidade para colher a fatiota formalista dos passos que, pacientemente, se foram convolando na essência da vida. Pertencer à grande família e construí-la, dar-lhe os seus elementos. Não admira pois que o ambiente seja um saudável rodopio em torno dos preparativos. Recebem-nos com a simpatia costumeira. O ancião, já prendido de amigo, dirige-se a mim e festeja a minha presença. Apresenta-me à sua esposa, aquela que outrora tinha anunciado a fuga do lar, se o oleado não surgisse rapidamente. A senhora é de bom trato e agradável, o que me leva a calcular que o nosso líder tenha exagerado quando lhe imputou tanto interesseirismo. Se calha pintou o quadro ainda mais sombrio para me condoer e impelir a dar-lhe os duzentos meticais para cobrir a casa. Não o censuro. Quantas vezes, desejando sermos perante os outros, teremos dito o que não era, teremos soltado um ai superior à dor, um lamento acima do sofrimento, um choro de falsa água, só para que os espectadores negligentes se lembrassem que existimos? O fosso entre o ser e o parecer é de tal ordem… A convivência é um grande teatro, com deixas e pontos, palco e pano, trajes e maquilhagens, canastrões e grandes artistas, tal como nas mais belas peças.

Os membros do clã apresentam-se em grande pompa. As farpelas mais bem tecidas, tudo a preceito, conforme exige a circunstância. Alguns solicitaram a confissão antes da cerimónia. É a praxe. Talvez pretendam rabiscar um interior puro antes de encetarem mais uma celebração de exaltação.

As galinhas que haveríamos de almoçar ainda se passeavam pela terra batida. Entre correrias assustadas, debicam pacientemente grãos de terra, pesquisando cientificamente, distinguindo o nutriente do mineral, auscultando com investidas matematicamente dimensionadas o coração da crusta castanha. A galinha. Azafamada e medrosa, faz vénias para comer. Inclina a cabeça e aguça o bico, inflama-se quando perigam os pintos. No genuflexório do tanque pousa os joelhos gastos e lava roupa, nunca existiu alguém tão grande. O ajudante do cozinheiro, um jovem ágil, corre atrás de duas galinhas. Apanha-as e, sem malvadez ou requinte, irreflectidamente, sem pesar ou prazer, num gesto tão mecânico com este que manda o oxigénio invadir os pulmões, corta-lhes o pescoço com um golpe unitário. Em breve, o corpo rijo e musculado das aves misturar-se-á com a cebola e o óleo, será o tempo das reacções químicas e galvanização das moléculas, e, concomitantemente, a farinha cozerá no pote de barro enegrecido pelo uso até ser echima.

Na modesta capela de Gimo, inaugurada no dia 1 de Outubro do ano passado, onde estive e me encantei pela primeira vez com este povo, começam os baptizados. Nos primórdios, este simbolismo aquífero representava a conversão, a inclusão, o reconhecimento da presença, da existência do Deus. Mas nas geografias desenvolvidas quase tudo embotou numa festa de família, pretexto de comeretes e bebedeiras, precedida por uma cerimónia estéril durante a qual se asperge um anjo. Tem sido tal a romaria que já se deu o caso de num festim inundado de gente virtuosa só ter lugar junto de deus a criança que ainda não foi baptizada. Contudo, aqui, na longínqua e esquecida comunidade de Gimo, o baptismo é um acontecimento verdadeiramente belo. Por isso vão recém-nascidos e crianças, adolescentes e jovens, adultos e velhos, alguns com tempo e outros a tempo de a passo largo atravessarem a soleira da porta do cristianismo. Reparo num jovem que se prepara para sentir a água benzida escorrer-lhe da nuca para o lobo frontal. Há algo nele que me sugere um quadro mal pintado, mas às vistas primordiais não descortino o que seja. Percebo, então. O humilde e novo cristão enverga um pijama colorido como fato de cerimónia. Afinal, na estética atravancada e embaçada deste rapaz, as calças confortáveis e o casaco de botões castanhos, com gola de bico, este pijama de meia estação adquirido nas calamidades cumpre com rigor as vezes de uma veste faustosa. A verdade é que o azul-escuro salpicado de elefantes de tromba eriçada lhe caía a matar. Numa cidade do hemisfério Norte, certo jovem entrou na igreja trajando um pijama e logo lhe recomendaram psicólogos, anti-depressivos e fármacos para a confusão. No hemisfério Sul, outro jovem submeteu-se ao baptismo com finura em cadência trajando um honroso pijama de elefantes, e logo se alegou na festança que o Alcides Mukuvulo vinha muito merecido até!
Aos baptizados seguiram-se os casamentos, a união com a pessoa escolhida ou recomendada, quem sabe imposta. Mas se a vida não é tantas vezes um conjunto de simbolismos que mais não explicam do que a nossa cândida intenção de manifestar quem não somos, desejosos que nos comprem por aquilo que gostaríamos de ser…

Os seis futuros casais dispõem-se taciturnos junto ao altar, menino à frente da menina, mas sem se fitarem nos olhos. Dir-se-ia que toda aquela parafernália de adereços e rituais os envergonham. Não se pode ser modesto quando toca a exprimir alegria no momento da mais unificadora das uniões. Ou pode? Pode Silvério Sabonete, quando perguntado “Aceitas como tua mulher Eulália Norberto até que a morte vos separe?”, responder cabisbaixo, num sopro sumido, “Sim aceito.”, e manter o olhar perdido no granulado desorganizado do tosco chão sagrado? Se for comandado pelo interior e não pelo exterior, talvez lhe permitamos essa desfaçatez, talvez reconheçamos que a suma virtude é a verdade e não a prudência. Esta simplicidade envergonhada é um magnífico ímpeto para quem procura perceber em que parte da nossa vida está a essência e quanto de nós podemos rotular de sobejo.

Passou-se a cerimónia e o ancião da comunidade solicitou-me que o fotografasse em poses reais com a sua senhora. “Aqui, junto ao carro, irmão!” Deliram quando lhes mostro o resultado milagroso da tecnologia no ecrã da máquina digital. No íntimo de quem não dispõe de um espelho, qual será o impacto da própria imagem registada para a posteridade? Nem se justifica a tentativa vã de percebermos qual seja, basta-nos tirar proveito da surpresa dos outros, que é algo em que somos exímios, quer para o bem quer para o mal.

Sentámo-nos para almoçar na palhota onde servem as refeições dos convidados e residentes ilustres. Desta feita, ao contrário da primeira vez, não me senti afectado pelas crianças esquálidas que circundavam o faminto casebre. Comi a galinha com refreio, mas por hábito, e não por imposição conscienciosa. Esta pobreza já não me dói como antigamente. As tragédias deixam de o ser quando não podem ser nossas ou quando já as contemplámos vezes sem conta, ora, o que fará quando estes dois requisitos se preenchem cumulativamente…

Antes da despedida, dirijo banalidades a um antigo membro da comunidade. “A festa estava muito boa! Devo dar-lhes os parabéns. E o senhor, já casou?”, “Eu já casou, mas se calhar para o ano vai fazer matrimónio.” Espantado com a precisão conceptual, tentei esclarecer, “Mas o senhor já é casado, ou não?”, “Sim, já é, mas também quer fazer matrimónio.”, “Bom, veja lá se isso não é um passo muito grande.” Ele espreitou discretamente o meu rosto e tornou a cabeça, que meneou na vertical, manifestando concordância e reflexão, para depois questionar, “E você?”, “Eu já fiz matrimónio, mas ainda não casei…”

Sunday, May 27, 2007

O Corvo Engaiolado ou o Pardal Livre e as Irmãs da Caridade - 21.04.2007 e 11.05.2007

Somos o que fazemos é expressão usada e refeita, alterada e ornamentada, dita com compostura e aprumo quando pretendemos demonstrar onde chega a nossa argúcia, tanta e tão desenvolvida, que já compreendemos que há mais e menos na língua do que no nosso coração. Reclamamos, pois, a corporificação, bem dizendo, a exteriorização do espírito, do seu lado dourado e do negro, exigimos, assim, algo ao alcance da dimensão sensorial, que nos permita avaliar os demais, dizermos da sua bondade e da sua maldade. Porém, o percurso do juízo moral sério inicia-se no exterior, onde se fundamenta, apetrecha de imagens, cheiros e ruídos, de sabores e impressões. Mas depois caminha para o interior, onde descobre que afinal não somos o que fazemos, somos também o que gostaríamos de ter feito, de não ter feito, somos, surpreendentemente, as nossas boas intenções, muito embora, diz quem sabe, o inferno seja farto nesta espécie. A labiríntica reflexão, que só por imodéstia pode conhecer avanços conclusivos, leva-nos a ver que não somos um, mas vários. Perguntas-te, por vezes, quem és, afinal. Pergunta-te, antes, quantos és, afinal. Apenas o fraccionamento da existência, distribuída pelas circunstâncias, pela cronologia, pelos humores, permitirá apreender quem são aqueles que somos. Em verdade, só as crianças de tenra idade se aproximam da unidade, pois são especiais e superiores, só o morto a atinge, pois é nada.

As irmãs da caridade foram fundadas pela famigerada e beatificada Agnes Gonxha Bojaxhiu, conhecida mundialmente por Madre Teresa de Calcutá. Senhora de convicções comuns, comiseração para com a pobreza e indignação perante a injustiça social, destacou-se pela raríssima opção de vida, traduzida na ajuda, não aos pobres, mas aos mais pobres dos pobres. Crianças estritamente abandonadas, idosos absolutamente desamparados, doentes de HIV e tuberculose em fase terminal. Quanto mais desgraçado, mais irremediável, mais justificada a sua intervenção. Somou a tanta disponibilidade um voto de pobreza extremista. O hábito, umas sandálias, um prato de esmalte, um jogo de lençóis, e pouco mais. Nem saberei que dizer de tal escolha, pois, em primeiro pensamento, se o copo cai, parte-se e toda a água se entorna, mais valerá a vassoura e a esponja, do que segurar uma gota num dos estilhaços. E isto é evidente para quem observa o relógio através da razoabilidade economicista do custo-benefício, mas não se passa o mesmo para quem pressente profundamente numa vontade divina ininteligível, se perscrutada pelos cânones racionais humanos. Seja como for, a sua descendência leu junto à letra os seus desígnios e cumpre-os a preceito. E foi esta prole que me desafiou a ir à penitenciária de Nampula projectar um filme sobre a vida de Jesus.

Julgo que o mestre de Petersburgo terá pensado que se podia conhecer uma sociedade olhando para as suas cadeias. Tendo sido Dostoievky o maior escritor de todos os tempos, a ponto de me apetecer dizer que antes dele se tentou escrever e depois nunca mais se conseguiu, até me amedronto de discordar. A premissa tem-me tirado horas de sono, todavia, parafraseando um querido irmão em plena prova oral na faculdade, “Sabe, reflecti muito sobre esse assunto, mas não cheguei a qualquer conclusão, não me ocorre mesmo nada que possa dizer sobre essa questão.”

Bem sei que a escolha do filme se fez mais por critérios evangelizadores, do que por decisões baseadas no ajuste do fato a quem o veste. Todavia, não se pode negar que a vida de Jesus dava um filme, uma peça de teatro, um livro. Pois se nela há de tudo quanto faz bem ao imaginário humano, às nossas perfídias escondidas e ao sumo desejo de que, no fim, tudo acabe bem. Intriga, inveja, ódio, perseguição, nascimentos, mortes, amizade, fraternidade, para alguns, amor. O herói é bonito, boa pessoa, inteligente, complexo, eloquente, defende os pobres e os oprimidos. A isto se juntam milagres e ressurreição. Parecem preenchidos os requisitos para uma história magnífica, que agradará à maior parte e fará alguns mudarem para sempre o rumo da sua vida.

A prisão fica a cerca de 30 Km da cidade. O espaço carcerário está sitiado por uma rede alta e electrificada. Assemelha-se a uma escola técnica. Alguns barracões abandonados do lado esquerdo, onde teriam sido as oficinas, e do lado direito, colocados lado a lado, surgem cinco ou seis pavilhões estreitos e longos, as celas. Entramos no corredor central do território e paramos o jipe junto a uns guardas que, sentados, tagarelam sobre assuntos banais. Logo se viu que a ideia de beneficiar todos os delinquentes com a sessão cinematográfica seria impraticável. Seleccionaram alguns. Entrámos no pavilhão para montar a maquinaria. Um corredor estreito, talvez vinte celas de cada lado. Salvos os cheiros desagradáveis e indiferenciados, nada me devem se gabar com frugalidade as condições do lugar. Células individuais, cada uma com a sua latrina, o seu catre, nada de indigno, tendo em conta a função da casa e a estirpe do morador. Os assassinos, ladrões, violadores, e nem é bom saber quanto mais, iam entrando vagarosamente e acomodavam-se como podiam no chão. Senti um moderado e inesperado receio quando me vi rodeado por tanto malfeitor. Fiz um esquiço de sorriso e esforcei-me por saudar abertamente quem passava. Alguns surpreendidos e acanhados, outros mais abertos e risonhos, todos retribuíam os bons dias. Emaranhado nos fios do computador, projector e colunas, tentando direccionar correctamente a luz para a tela, nem me apercebi do que se estaria a passar na retaguarda. Mas depois de tudo preparado, virei-me para traz e não vi mais do que uma massa humana, negra, duzentas e muitas pessoas assentadas, enlatadas, fitando-me fixamente, esperando o começo do grande espectáculo. Não se faz esperar quem disso faz vida.

A fita rodou sem parar e aqueles 400 e muitos olhos não desfaleceram, não quebrantaram quando o calor era já insuportável. A primeira manifestação sucedeu no momento em que Maria comunicou a José que estava grávida e este se revoltou, desconfiando da fidelidade da sua futura consorte. Entre risos de troça, lá se foi ouvindo “É pá, eli tem razão. Eli ainda não fez nada com ela!”. Quando Jesus nasceu, estes corações distorcidos voltaram a emergir. Entre vivas e algumas palmas, um deles bradou alto e bom som “Este é que nos diz a verdade!”, e os outros sorriram. Mais adiante, durante a crucificação, insurgiram-se alguns, mostrando a sua indignação pela condenação, flagelação e execução de um homem inocente.

Deslumbrado, gozei aquelas figuras. Homens de muitas idades, mestiços e negros, gordos e magros, culpados e inocentes, arrependidos e indiferentes, cada qual a viver no presente as consequências da conduta passada ou a incompetência do sistema judicial. Suponho que alguns terão tido medo, terão chorado, terão, na sua vida, sido capazes de mostrar a nobreza do seu coração. Mas um dia a circunstância surge, a necessidade aperta, o cérebro desregula-se por via de um processo químico ignorado e incontrolado. A formação já não seria muita, nada perde quem nada tem, a mão levanta-se, apropria-se, prime o gatilho, desfere a catanada. Entra-se neste ritmo e depois, como acontece com todos os vícios, é o cabo dos trabalhos para voltarmos ao hábito.

Tudo visto e revisto, chegou a hora de regressar ao ponto de partida, às celas, talvez com a recordação de um momento diferente, bem passado, quem sabe, mais à frente, análise de conceitos, ideias e princípios, cogitações férteis sobre o manuseamento do leme e o destino da expedição. Os presos ajudam-me, gentilmente, a arrumar o material que os serviu. Agradecem-me, e eu a eles, por estas duas horas de sonho e aprendizagem. Teremos tido, gostaria de acreditar, neste enredo de musselina ao qual chamam convivência, segundos raros durante os quais dois homens se entreolharam sem se julgarem.

Um dos encarcerados disse a uma das calcutas “Eu vai mudar a minha vida, irimã!”. No caminho de volta, a estimada freira contava esse episódio com um travo esperançoso e crédulo na laringe. Pensei, com ironia irreflectida, “…O máximo que te poderá acontecer é mudares de cela, se te portares mal…”.

Mas cada um acredita no que quer.

Permaneço refém de uma imagem de infância que, manda a honestidade dizer, não sei se é facto histórico e consumado ou o fruto de uma imaginação sedenta de simbolismos e orientações, sinais transcendentais, enfim, o resultado de uma desesperante e inesgotável vontade de perceber quem somos e onde estamos. Reza a minha memória o seguinte. Há cerca de vinte anos, fui com a minha avó paterna a uma mercearia. À saída, ter-me-ei oferecido para carregar um dos sacos das compras. No caminho, intrigado com estas questões da omnipotência e bondade divinas, perguntei “Ó avó, se Deus é tão forte, por que é que ele não mata o diabo?”. A minha avó, terá reflectido um pouco sobre a questão e respondeu “Porque o diabo também faz coisas boas. Agora, foi ele que te mandou levares esse saco.” Quem tem ouvidos, ouça, quem puder compreender, compreenda.

Olhar para elas já seria recompensa suficiente, quanto mais estar junto ao maior expoente da existência humana, tocar-lhes no rosto, sorrir-lhes fielmente e pegá-las ao colo. A única desilusão que não tive nesta caminhada foi a criança africana, a mais pobre e serena do mundo, amigável e medrosa. Vê-los descalços, roupa encardida, olhos negros e fundos, a viva curiosidade...

As crianças, e estas em especial, são percentagem considerável da beleza da Terra. A sua superioridade é de tal forma evidente que não contempla discussão. Percebo agora Heraclito, percebo agora aquele que me disse, um dia, durante uma festa, “Sabes, de toda esta gente, aquele com quem mais me identifico é a criança de 3 anos”. Perpassou no ilustre filósofo e neste simplório confidente o desejo de se aproveitarem um pouco da grandeza dos petizes. Surpreendem-me, pois, esses que arreiam nas crianças com o pretexto de assim as educarem, quando facilmente se encontram adultos mais merecedores de sova e menos sensíveis às orientações e às palavras reparadoras. A menos que alguém tenha conhecido menino ou menina que merecesse mais as palmadas que lhe dão do que quem lhas dá.

Foi assim que, alegremente, recebi o convite das irmãs da caridade para projectar o filme sobre a vida de Jesus a 300 crianças de idades entre os 5 e os 12 anos.

Entrei no recinto onde se encontra o salão da paróquia e já lá estava, ansiosa, a multidão de querubins. Olharam-me com temor, sem a descrição que os impuros e argutos investem em tudo quanto fazem, miraram-me candidamente, algumas sorriram, outras recolheram o rosto com vergonha, outras, ainda, pasmaram-se apenas.

Tudo preparado. Iniciámos a projecção do filme. Passados alguns instantes, notei que a muitos muito do filme escapava. Para crianças que apenas dominam a língua macua, está mais acessível um coco agarrado à sua mãe de 4 metros, do que um filme falado em inglês e legendado em português. Pelo que me vi compelido a interromper periodicamente a viva locomoção imagética para lhes explicar o que viam e quanto diziam aquela senhora, este romano, aqueloutro carpinteiro. Crianças de má sorte! Estão numa escarpa e querem passar para outra, além do desfiladeiro, e a ponte que lhes servem é de estaca comida pelo bicho, paus transviados, enfim, um comunicador deficiente no geral, em particular com as crianças, o que dizer das que pouco português conhecem. Mas a verdade é que escutaram atentamente a minha voz, a explicação, as sugestões, os prelúdios, os prognósticos, enfim, a sua grandiosidade é tal que não olhavam para o lado, com receio de me desconsiderarem.

Valeu que o filme era rico em imagens e música, mas comedido em palavras. Quando Jesus nasceu, um “Ahhh!” geral propagou-se pela sala, os sorrisos espalharam-se por todos os rostos. Mais adiante, a Paixão. Jesus está deitado sobre um tronco delgado que o atravessa de um braço ao outro. O centurião ordena aos súbditos que façam o prego perfurar a carne das mãos boas deste homem, e a cada estocada, estas meninas e estes meninos fecham os olhos, escondem a face, aturdidos de terror. Uma rapariguinha entra num choro convulsivo. Não me consigo conter e o riso que tentava trancar viola a fechadura, sai à porta e mostra-se, deixando as crianças espantadas. Não saberão, talvez, que me rio de felicidade por poder observá-las e estar perto delas.

A Beleza é escura, pequena, move-se lentamente, tem um andar privado e senta-se ao nosso colo se lhe conquistarmos a confiança. Depois do primeiro impacto, mantém uma expressão estranha, que nem é de felicidade nem de tristeza, pareceria reflexiva, não fosse a idade. Aninha-se, apenas, recebe as carícias que lhe dão e não exigiu, demora-se naquela pureza tranquila somente ao alcance de quem está em paz absoluta…

Monday, May 07, 2007

O Último Embondeiro - 27.04.2007 a 29.04.2007

Se existisse um lugar onde pequenas casas de alvenaria, alinhadas a regra e esquadro, se dispusessem comodamente numa pequena porção de espaço. Todas em fila, bordejando uma estrada de terra com pouco mais de cem metros. As árvores espalhar-se-iam por toda a parte, a natureza viva e fresca embrenhar-se-ia com os pedregulhos embotados e cinzentos. E se este cenário estivesse envolvido por um concha aberta de pequenas e mastodônticas montanhas, penedos e fragas, tudo coberto de um tenro verde, despoletando no visitante e habitante a sensação de que a natureza nos quer bem e jamais nos molestará. E se existisse um sítio assim…

Foi preciso caminhar muito para chegar. Mais de 250 km, sempre por estrada intransitável. Buracos e crateras, desvios e poças, pontes descaídas, leitos de rio a arar no centro da via, explicando-nos o que foi preciso transformar para que este planeta nos servisse. E á medida que avançávamos mais nos distanciávamos do escol civilizacional. Para onde vamos, a electricidade ainda não foi domada, os telefones buscam em vão o sinal das antenas, a imagem colorida do televisor tardará em se arrimar. Mas chegámos, e não é permitido esquecer a magia que se desenha na alma do Homem que chega ao fim do mundo, ao termo da história.

Os gigantes monolíticos unem-se como se de siameses se tratasse. São o notável resultado de uma excitante e geológica gestação. Fazem a meia elipse das duas mãos abertas juntas pelos punhos, prontas a amparar. Árvores baixas e outra vegetação rasteira trepam incansavelmente os íngremes penhascos, mas nenhuma se atreve a atingir o cume, ou, pura e simplesmente, talvez as forças não cheguem a tanto. E nós, quantas vezes, artilhados de cordas e calçado apropriado, mosquetões e arneses, vacilámos nos últimos metros da subida? E a camélia branca, da qual se diz ser a beleza perfeita, esperava-nos impávida e serena. Todavia, é ciência de todos, o que custa não é a primeira metade do caminho, são os últimos passos, as estopinhas secam, nem para trás nem para diante, e aí está o cabo dos trabalhos para consolar o alpinista, pois “fez tudo quanto podia”.

Na casa dos missionários, um dos empregados, Discípulo de seu nome, envergava duas camisolas de meia manga. O sol faz o pino, nem zéfiro à vista, nem gotícula preparada para mergulhar.

Passeámos por aquela viela desnivelada, pretendendo bom dia para toda a gente, cem metros para lá e os mesmos para cá. As casas coloniais dispõem-se em formatura disciplinada, respeitando algumas intrometidas de arquitectura mais recente. Os moçambicanos ainda estão penhorados pela betoneira lusa. Todas albergam serviços administrativos e poder local. Uma delas, com pouco mais de 30 m2, encerra o tribunal distrital. Cumpre a esta instância decidir as acções de valor reduzido e os crimes mais ligeiros. Pelo palácio da justiça escorrem o tempo do desleixo e do desprezo pela manutenção. Os salpicos de tinta sobejantes asfixiam agudamente e muito se batem para provocar a reacção das células de visão cromática, que nos concedem esse espumante luxo de vermos o mundo pintado. O juiz de distrito não tem, tal como, em regra, acontece no resto do país, o curso de direito. É, talvez, um homem de bom-senso, capaz de escrevinhar ou ditar sentenças. Terá certamente dificuldade em destrinçar o costume da lei, a tradição da equidade. Hoje injustiça, amanhã a solução equilibrada, como em qualquer digno Tribunal de Direito. Seja como for, não passou por aquela patologia pertinaz, fatal para os alunos da lei, que em muitos persiste até ao fim da vida, durante a qual, na fase aguda, só sabem que adoram Kafka e, numa perfunctória cavaca cafezeira, a expensas da fleuma dos interlocutores, dilatam-se com vocábulos mais onerosos do que o sucedâneo de caviar ou as ovas de sardinha enlatadas. Em suma, devem os moçambicanos também ficar gratos aos seus colonos por não terem sido capazes de dotar os mansos e submissos de instrumentos indispensáveis ao governo de um país. De modo que depois da debanda foi um vê se te avias como puderes, desde que nos convenhas. É esta perene lógica de vos trazer num simulacro frenético estagnante que, ontem e hoje, vos destrói. E a lástima é que vós pareceis respirar indulgência perante esse desígnio de copiosa iniquidade.

Na casa destes amigos, um dos funcionários, a quem chamam Discípulo, cobre-se com duas tee-shirts. O sol está alto e sobranceiro, nem brisa se pressente, nem humidade se avizinha.

Algumas pegadas depois, encontramos o Serviço Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia de Lalaua. Segundo foi possível apurar, em todo o distrito, funciona um único computador... No muro do edifício, repousam alguns educandos, jovens ou técnicos, aguardando as benesses da luz, o primor da Internet, o servilismo vicioso do telemóvel.

Passamos pelo mercado, mini, conformando-se com o resto, no qual encontramos feirantes acomodados em cadeiras de porte ligeiro mas construção intrincada. Um tricô de canas de bambu, ponto de cruz, caseado à distância, todos esses emaranhados de fios e fiadas, embrenhados até tomarem a forma desse utensílio tão apreciado pelos cultores do descanso. Pelo seu aspecto tosco e a sua pobreza de material chamam-lhe, nestas paragens, Cadeira de Começar a Vida. Seria bom acreditar nesta filosófica e prospectiva designação, pois isso significaria que este assento pertence àqueles que almejam um futuro melhor. Bom seria, de facto, porquanto cada vez se apresenta mais árduo escavar e desencantar a materialização dos pilares necessários ao sustento de uma esperança condigna, que nos olha sem timidez e diz “Aqui me tens, ao serviço das tuas pernas e braços, ouvidos e boca, aqui estou eu, pronta a estimular indeterminadamente o teu coração”.

Num pequeno talhão cercado por estacas de madeira, jaz fenecida a campa de um régulo importante neste território. Ao seu lado erige-se uma árvore de corpo robusto, desfolhada, um desafio à estética. Representa a planta lenhosa mais excelsa das que caminham por este planeta. Se estamos na meta do mundo, na raia da história, é, provavelmente, o último dos embondeiros…

Neste reservatório da minha gratidão, um dócil homem, biblicamente nomeado Discípulo, usa o já mencionado duplo envoltório. O astro-rei resplandece com fôlego, nem aragem delicada, nem chuvisco prematuro se assoma.

Segundo o cálculo mais realista, terão morrido trinta milhões de negros só no transporte de escravos até aos locais onde era premente a sua precisão. É este o maior genocídio da história. Nem Incas, nem Astecas, nem Judeus nem outros que tal, ninguém se pode lamentar de tanta atrocidade como estes povos. Isto assim, esquecendo o relato das vidas dos sobreviventes, servos e seviciados durante gerações. Consta que muitos escravos comiam as próprias fezes para se suicidarem, pois na sua honra não cabia aquele enxovalho, contudo, nas suas forças também não entrava o poder da libertação. E se os pretos não tinham alma, por que motivo ela lhes doía tanto? A nós, descendentes do chicote e dos grilhões, cabe-nos, penso eu, recordar e amenizar os efeitos desta tortura. Todavia, por vezes, já não sei se legítima ou ilegitimamente, cruzamos os braços, fugimos do mais poderoso e destrutivo dos sentimentos, superior ao mais profuso amor materno e paterno, o poço onde explicamos quem somos, esse sentimento, ou essa, da qual havemos de falar um dia, noutros lugares, se a vida assim quiser, essa, a quem chamam Culpa. Não sendo castrando esse hábito de louvar os descobrimentos e o domínio sobre o mundo, havemos de reconhecer que quem herda os bens, herda os males, quem sucede nos direitos, sucede nos deveres, quem aceita os créditos, aceita as dívidas. E se nós, porventura, não devemos esquecer quem fomos, não podem estes viver perpetuamente atrofiados na vitimação inextinguível, que tudo justifica, a começar no ócio, mãe de todos os vícios, a acabar no ofício da mendicidade, pai da maior das humilhações. Levará tempo até que, aos olhos desta gente, eu perca a cor branca, e que eles, aos meus, se desfaçam da epiderme pardacenta. Todavia, já encetámos a longa caminhada.

“Ó Discípulo,” perguntou o Alberto, um bom amigo missionário, “por que é que anda com duas camisetes?”, inclinando para baixo a cabeça, “Ó Senhor Padre, é para não apanhar tanto Sol e ficar um pouco mais claro, como o Senhor Padre”.

Tuesday, May 01, 2007

Alberto ou le Saudosisme - 194… a 20…

“Rapaz, rapaz, ó rapaz, anda cá”. Foi assim que Alberto, já frágil mas no início da vida, se convenceu de que o seu nome, em português, era Rapaz. Bem se vê que para uma criança moçambicana, em 1940 e quê, muito longe de conhecer a língua do seu país, Rapaz pudesse muito bem ser a tradução do seu melodioso nome makhua, Alberto, para a língua da nação, o português. Provindo a convocatória de uma branca bem-posta e esposa de gente distinta, oficial ou sabe-se lá quanto mais, sendo o convocado portador de uma ternura inocente, nada nos resta senão acreditar, por ser verosímil, que Alberto cuidou, um dia, chamar-se Rapaz.

No dia 30.09.2006, entrei derreado na casa dos missionários, amassado no corpo e na alma. Encontrei então este velho homem, de diminuída estatura, corcovado, andar desengonçado e desfalcado nos dentes. Serviu-me cabrito com arroz, que, não obstante a fome, comi moderadamente e disfarçando a avidez, tal era a cerimónia que ainda me impunha, aquela fina relutância em sermos genuínos quando chegamos ao desconhecido. E, nessa noite, vi-o partir para casa, gozando do privilégio de usar um chapéu da selecção das quinas.

Os dias correram, o acanhamento dissipou-se, e gradualmente fui entrando na cozinha, já não para beber água, já não apenas para requisitar pão e leite, mas para trocar palavras e comentários com este amistoso cozinheiro. Algo haveria de nos unir. Luto por compreender essa estirpe maquilhada que, assim, numa superficialidade arrepiante se deita a desprezar o futebol. Vivem, quiçá, alojados em mundos ininteligíveis de opiniões relevantes, fraseologia sibilina e concupiscente, põem-se no cimo da montanha quando até o sopé, vida tivesse, os rejeitaria. Masturbam-se, possivelmente, a decifrar os inextrincáveis paradoxos de Zenão, mas desconhecem que o Benfica é o maior clube do mundo. Pobre gente! “Ó senhor Alberto, qual é o seu clube?”, “Xi, eu sou do Porto. Do Porto, mesmo. Até chama-me Pinto da Costa”, “Senhor Alberto, já estragou tudo. Então você é o do Porto! Não sei se nos vamos dar bem…” E entre um sorriso benigno, um descer de pálpebras complacente, encontramo-nos, sintonizamo-nos, descobrimos, enfim, o primeiro elo de ligação. É este o inigualável poder do futebol, que mais nada possui: dois estranhos cruzam-se ocasionalmente, um pergunta ao outro qual é o seu clube, e conversam a tarde toda.

Este que agora vedes, corpo obsoleto e figura de pouca cobiça, foi em tempos extremo do Ferroviário de Nampula. Já nos tempos clube de destaque, ainda hoje os pelados da nação aceitam com alguma distinção os seus valorosos atletas. Ao meu Alberto, essa arte de pés valeu-lhe a equiparação. E ser indígena assimilado a português não era consagração de desprezo, antes ao contrário, tratava-se de honraria aplaudida, fonte de direitos, semente de estatuto e progresso pessoal. O prognóstico era, a este tempo, colorido, pedia aos lábios que se esticassem na horizontal. Mas o tempo passa. E quantas vezes ele despreza imperialmente as nossas mais repetidas e devotas preces de imutabilidade, de continuidade, de permanência? Só quem passou pelo estranho e insondável lamento, vertido na exclamação “Nunca mais serei tão feliz como fui!” poderá sopesar a tristeza profunda que encontramos no decaimento, no triste desprendimento pela própria existência. Olhámos para trás, o coração apertou-se, a sístole susteve-se, e pensámos “Mas devo continuar”. Interiorizámos o comando perceptivo e o sangue voltou, contra o seu gosto, a percorrer os seus caminhos. Seu pai não lhe permitiu o salto para o Ferroviário do Maputo, outro palco e outras luzes, outras esperanças e futuros, enfim, a história muito ouvida, “Podia ter sido um grande jogador, mas isto e aquilo. Jeito não faltava. Olha, ainda treinei com este, aquele e aqueloutro…”. O meu Alberto ficou, pois, remetido ao provincianismo futebolístico e, alguns anos passaram, a carreira findou, e dos campos da bola saltou para a cozinha de um distinto Sr. Dr., médico na cidade de Nampula.

A estima por esta gente ainda lhe estala crepitante no olhar, quando recorda esses tempos. “Era gente boa. Amiga de mim. Muito boa.” E, de facto, bom trato davam ao cozinheiro. Chegou a ir às Chocas, no Verão, e a gozar merecido descanso na época estival. E a Senhora, que, pelo visto, o instruiu com sucesso no mester da colher de pau, do condimento e do gostinho, da cebola e do alho, do azeite e das ervas, do especial travo lusitano que se entranha no lácteo cabrito, capaz de nos transportar à nossa terra. E a vida poderia ter mantido este registo, pois se aqueles vinham para ficar e este estava acomodado no seu amigo seio, não se assomavam motivos para que o convívio se extinguisse, para que as partes de apartassem.

Sob o seguro o secundário Sol primaveril, a arma posa na vertical e de perfil, detida nas mãos de um trajo militar. A criança, de fartos caracóis loiros, equilibrando-se no poleiro feito de bicos de pés, exibindo a expressão facial própria de quem está empenhado numa tarefa manual complexa, boca deslocada, narinas dilatas, olhos de bugalho, estica o braço e faz o cravo escorregar pelo cano mortífero da metralhadora.

Sob as derradeiras e moderadas enxurradas da época das chuvas, centenas de milhares fazem a selecção fundamental entre o essencial e o fungível, o valioso e o dispensável, o pequeno e o grande, enfim, entre aquilo que é possível levar e o que se impõe deixar, emalam as papaias e as mangas recolhidas com o auxílio do ambicioso escopro. Correm para os portos e aeroportos, onde encontram um transporte quase fidedigno para o património móvel. Em passos trementes e coarctados pelo coração, mas coagidos pela razão, avançam lentamente, deixando a casa, a fábrica, as infinitas machambas, a fortuna e a felicidade, as vergastadas no lombo de alguns servos, perpetrada pela crueldade, as saudades e fortes lamentos de alguns empregados, regadas pelo humanismo e pela bondade.

Despolitizado como estava, nem lhe ocorreram os benefícios políticos e sociais, financeiros e económicos, a reconciliação histórica, a reposição da justiça, a projecção do Homem Novo, a promessa de igualdade, o fim da discriminação, o termo da miséria. Ficou sem patrões, e é tudo. Sem revoltas ou alegrias, cedo se conformou com o novo quadro, num minuto se acomodou ao novo cenário.

Um homem estava sentado numa cadeira, enquanto outros dez, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos espectadores como as trepadeiras se entretecem no poste dos alpendres bem tratados. Um dos verticais, irrequieto e reflexivo, deu um passo em frente, esperando que os demais o concitassem a tosar devidamente os costados ao repoltreado apupado, materializando-se o que era já consciência universal, mas apenas tinha ser linguístico, “Essa cadeira é de todos.”. Um insurrecto bem sucedido estava sentado numa cadeira enquanto outros nove, em pé, o observavam. As varizes arroxeadas entrelaçavam-se nas pernas dos vetustos espectadores como as trepadeiras se entretecem nas hastes dos alpendres bem tratados. Outro dos verticais, insatisfeito e destemido, deu um passo em diante, aguardando que os demais o instigassem a surrar convenientemente o pêlo do acomodado vilipendiado, concretizando-se o que era já ciência geral, mas apenas tinha existência sonora, “Essa cadeira também é nossa.” O segundo sublevado estava sentado…

Passou a trabalhar na fábrica, até que a maquinaria administrativa e o rigor contabilístico exasperaram, saía mais do que entrava, muito na mão e pouco no bolso, até que cerraram a mais fundamental das portas e a questão “défice, não défice” ficou solucionada.

Precisaram de um cozinheiro na nova casa dos missionários. A oportunidade tocou à campainha de Alberto, abriu-lhe a porta e acolheu-a como aprazível para o seu destino. E, doze ou mais anos passados, o tacho continua a escaldar a sua base sob as ordens do Senhor Alberto.

Ter-me-á dito um dia que o seu grande sonho era passear-se por Portugal. Mas estranhei no seu semblante um estado de alma inapropriado à pretensão que me apresentava. Ao invés da fácies desejosa de novidade, do nunca visto, de abrir a porta cerrada, dispunha-se com ares de quem já conhecia o majestoso saudar do pinheiro bravo, as serras e os montes caiados de cerejeiras em flor. Parecia recordar-se de, encostado a um pipo, beber num trago o vinho que banha o pedaço de chouriça condimentada, provocando o faiscar baboso do palato. E pergunto-me se poderei asseverar sem tropeçar num ilogismo “Conheci um homem que tinha saudades de um sítio onde nunca tinha estado!”.

Certa vez, levou-me a conhecer o seu bairro. Na digna casa onde vive, comprada pelos Combonianos, junta a sua numerosa família na demanda parcialmente infrutífera por um futuro mais próspero. A morada deste cozinheiro, composta por blocos e cimento, tem um pequeno avançado ao qual chamam varanda, onde nos podemos sentar e observar o vaivém dos habitantes deste bairro. A rua principal, térrea e irregular, está ladeada por casas e casebres que afrontam os transeuntes. Mais adiante, um mercado de tudo, de farpelas e calçado, batatas e cebolas, alho e feijão, milho e farinha, pilhas e preservativos, espelhos e esferográficas, enfim, quinquilharia usada, víveres e bricabraque para quase todas as mais elementares necessidades de um povo pouco exigente.

Presentearam-no com um fato de treino azul, uma camisola oficial do FCP, um chapéu do mesmo emblema. E foi vê-lo, nas suas folgas, passear com profusa polpa, inchado como um grão de arroz aquático, parando aqui e ali para cumprimentar conhecidos e amigos, beber um refresco, mostrar a esta cidadela carenciada quem é, afinal, o grande adepto, quem é o detentor da figura mais virtuosa em estética e bom-gosto. Para fazer crescer o já vasto conglomerado de soberbos adornos dei-lhe algumas amostras de perfume. Pegou nas primeiras gotas balsâmicas e, à minha frente, impedindo-me um ai, sorrindo envergonhadamente por tanta vaidade, decantou o frasco na cabeça. “Ó senhor Alberto, isso não é assim! É para o pescoço e só precisa de deitar um pouco.” Riu-se da sua ânsia em ficar superiormente apetecível. Agora, instruído sobre as funções, fins e regras utilitárias do perfume, suponho-o caminhando, ao fim da tarde, imagino aquele vulto azul, com um sorriso de satisfação e realização, calcorreando as ruas de Nampula, largando na brisa tépida a mesma fragrância que enaltece qualquer fidalga senhora nas avenidas mais imponentes de Nova Iorque.

Sentado à mesa metálica da cozinha, depois de nós nos termos saciado, engole apressadamente o jantar para evitar, na caminhada de regresso ao lar, os perigos e azares em que a noite é fértil. Nádega e meia na cadeira, tronco curvado sobre o prato, copo encardido à frente. É impressionante como a simplicidade não nos larga, quando está entranhada no líquido amniótico, quando foi o lugar onde nos fizemos gente e crescemos.

Na noite escura que segue o dia de trabalho, refastelado na débil cadeira da sua varanda, seu lugar cativo, faz ressoar por todo o bairro a voz de Amália. Não fosse o fado a maior de todas as saudades… Recorda os tempos em que era novo e rijo, tinha esperança num futuro providente e bonançoso, corria atrás da bola irrequieta, no campo do Ferroviário de Nampula. E o amante da lhaneza, paciente e discreto, poderá ainda hoje sentar-se numa pedra angulosa do bairro, segurar o queixo com o punho, e ouvir este homem recordar quem foi, observar Alberto Chauveke, o rapaz que, um dia, cuidou chamar-se Rapaz.

“Eu tem tido sorte com as pessoas.”, disse-me um dia. “Sabe porquê, Sr. Alberto?”, “Não, num sabi.”, “Porque as pessoas têm tido sorte consigo”.

Monday, March 26, 2007

Ensaio Descarrilado Sobre a Doação - 28.09.2006 - 24.03.2007

I. Da Doação

Dar é, assim, este acto mágico e melódico, este elixir docemente perfumado, mediante o qual o que é de alguém passa a ser de outro. Dinheiro, um abrigo, uma coberta, um galo, um livro, um abraço, um beijo, um sorriso, uma aula de macua, enfim, tudo se dá. Um mero mas significativo acto translativo que, na sua modalidade mais radical, leva o doador a desfazer-se do seu Tempo.

II. Do Doador e da sua Motivação

Porque me sinto bem. Para ajudar quem recebe. Porque espero receber na volta. Porquanto a consciência me pesa. Pois se gosto do donatário! Pois se o amo!! Dou porque lamento o pobre. Foi assim que me ensinaram. Tenho muito e já não encontro onde pô-lo. Dou, afinal, não só mas sempre também para que os outros vejam que dou.

Por que damos? Qual é a força externa ou interna, pura ou maculada, espontânea ou repensada, qual é o mote poderoso que nos leva a dar?

Um maltrapilho, de pé boto, estritamente etilizado, trajando imundas calças de meia-perna, segue-me pela cidade, apoiado num pau sinuoso, “Patrão, dá mili! Estamos mali aqui, dá mili, patrão”. Cansado de o ouvir, incapaz de sentir um lamento pela sua condição, mas irritado com a sua presença, abri a carteira e pus-lhe 20 Mtn. nas mãos. Dei para que me não incomodasse mais.

Se ao menos o Homem não fosse tão apegado ao ter, tudo se interpretaria nos folhos da nossa essência, como se dar fosse tão-só o resultado de sermos como somos, um reflexo ontológico da nossa humanidade. Mas se o doador é tão valorizado pela sociedade, se o filantropo é aplaudido de pé, só devemos concluir que dar não faz parte de nós, é antes o nosso oposto.

Já que me desfiz, e não é pedir muito, ao menos que alguém o saiba e me dê o devido valor!

Certo dia, alguém se abeirou para me dizer o quanto necessitava de partilhar com o mundo um acto de bondade. Ter feito o bem por outro é reconfortante, mas se ninguém o sabe, nem tão-só o beneficiário, qual é o meu proveito? Quero, ao menos, ouvir um “fico-lhe grato”. Se te dou, sabe que te dou, ou melhor, sabei-o todos, para que possais avaliar quão generoso sou. A menos que também a outros devesse dar, pois, nesse caso, a doação fica só entre nós. Seja como for, haja alguém, para além de mim, consciente deste gesto tão notável.

Mandou Jesus, “Tu, porém, quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique em segredo; e o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará”. Na sua imensa genialidade, já adivinhava esta desconsolada necessidade do hominídeo topo de gama de propalar o próprio desprendimento. Lendo-nos, mandou-nos calar as doações. Silenciar perante os semelhantes, pois deus tudo vê e presencia, e assim sendo não necessitamos de soprar ao vento o perfume da nossa estética espiritual. Não nos solicita que combatamos o vício, lembra-nos somente a existência de um observador especial, cuja bondade deverá saciar a nossa fome de exteriorizar a nobreza do coração, há-de preencher este poluído desejo de sermos recompensados pelo bem que fazemos.

Vê além do que os olhos te permitem.

Quanto mais contrafazes essa necessidade de ser perante os alheios,
mais me confranges, Mais infame é essa empresa decadente.
Excita-se em mim o desprezo pelas máscaras que se apressam a cobrir-te o rosto,
confirma-se, sem reserva, O prejuízo da tua existência.

No Futuro, surgirá um Homem irrestritivamente diferente. Incapaz de fingir, preso à verdade e liberto por ela, olhará sem vergonha para os seus defeitos e permitirá que os demais se aproximem deles. Insatisfeito com quem é, buscará incessantemente a perfeição, mas não se esconderá atrás do falso cortinado bordado por quem dele espera. Em verdade, terminará pregado a uma cruz, apaixonar-se-á por uma rameira de S. Petersburgo, cavalgará, ensandecido, pelos campos manchegos, condenar-lhe-ão o estro à morte por lhe não ter corrido uma lágrima no funeral da mãe. Este, ou fado similar, será o radical termo da sua passagem por nós, mas a ninguém será legítimo desconhecer esse brilho especialíssimo, essa luz magnificente e deslumbrante, essa elevação superior, a humilíssima simplicidade de nunca ter escondido quem era.

Feliz daquele que pode dizer “dou-te, apenas, para de te ver sorrir”, pois esse é o São.

III. Do Donatário, Pedinte ou Recipiente

Saio ligeiro da casa agradável das responsáveis da organização Justiça & Paz, a qual está plantada no seio de um modesto bairro. Dois passos apenas e logo quatro crianças futebolistas me convocam “Tio, tio, tio, compra bola para nós, nós não tem bola.”. “Vocês não vêem que eu não tenho dinheiro. Também sou pobre.” “Então anda jogar com nós.”. “Não posso, tenho que ir trabalhar. Talvez trabalhando junte dinheiro para comprar uma bola e depois jogamos juntos.”. “Então, vem na sexta-feira para ver nós dançar e cantar.”. “Mas vocês dançam bem?”. “Nós dança bem. Muito até.”. “Bom, farei os possíveis.”. Rodeado de crianças, já não conseguia identificar a singularidade de cada rosto, limitando-me a uma visão de conjunto. Sinto algo a percorrer o braço, como uma pena leve e macia. Reparo então nos dedos comandados pela curiosidade de uma pequena criança, deslumbrada com a minha palidez. Fita-me embasbacada e passa a sua incrédula mão pela minha pele, tentando perceber onde termina a nossa diferença e começa a nossa semelhança. “Tio, fica aqui, fica aqui, com nós.”. Desta vez, não tive coragem de lhes dizer que não sou irmão do pai ou da mãe deles. “Não posso, a sério, não posso mesmo.”. “Então fala português, fala português com nós.”. “Português?! Mas nós estamos a falar português.”. “Não é este português, este não é bem. Nós quer o português de Portugal. Fala um pouquinho!”.

Estou em casa, aspirado pelo trabalho infinito. Tocam à campainha. Diz-me o Senhor Alberto que é para mim. Atendo um senhor de uma comunidade rural, do mato, a quem, há meses, ajudámos a recuperar a casa, comprando “parroti” e chapa zinco. Oferece-me uma galinha. Viva, ainda, mas atordoada pelas mais de três horas que já leva de patas para o ar. “Vinha dar lembrança, para levar para casa.”. “Fico-lhe muito agradecido, mesmo muito. Não tinha que se incomodar. E essa vida, como vai?”. “Agora, estou mali, mesmo mali, pá.”. “Então?”. “A minha casa voou, ficar sem tecto. Agora, nós vive em casa da mamã.”. “E a sua mulher?”. “Xiiii, estou mali, pá. Ela quer ir embora. Estou mali, aqui, pá.” “Então, e agora?”. “Eu precisa de comprar oleado. Com oleado já pode voltar a casa. Mas não tem condições de comprar. Estou mali…”, e baixou desalentadamente a cabeça, pousou os olhos no polido mosaico e posou para mim na sua desventura. Sentando à sombra de um sereno cajueiro, o nosso ancião pensava na solução deste bicudo problema. Sem tecto na casa, prestes a ficar sem mulher, prestes a ser remetido à casa da mamã. “Eu leva uma galinha ao mucunha e ele dá dinheiro para o oleado.”. E o mucunha lá acaba por ceder, “Pronto, tem aqui 200Mt. Compre o oleado e mande cumprimentos à sua mulher… ”. Mais tarde, a lâmina bidemsional seccionará o frágil pescoço do animal, que ainda viverá uns frágeis segundos depois da morte cerebral. O hábil executante conseguirá aproveitar o sangue quente de um incandescente vermelho, o qual em breve se misturará com o acre vinagre. Por tão-pouco, uns têm cabidela no prato, outros têm tecto em casa.

Estou prestes a cruzar a linha que separa a rua da composta casa dos combonianos. Um polícia fardado dirige-se a mim. Alto, esguio, de passo certo, sem chapéu. A face está um pouco padecente. Ponho-me a presumir o motivo por que se dirige a mim e traz plasmada no rosto a nítida intenção de me falar. Tosco sou por ainda presumir. Sendo a presunção esse raciocínio lógico que nos permite inferir o desconhecido do conhecido, pressuposto da operação é a ciência segura do facto instrumental. Contudo, neste lugar, a certeza é meramente conceptual, deambula perdida no plano das ideias de intrusos estrangeiros incapazes de percepcionar o fosso. “Boa tarde, como está, Sr. Polícia. Em que posso ajudá-lo?”, cumprimentei e perguntei. “É pá, estou mali. Num tenho jantari, tenho fomi. Dá qualquer coisa, patrão. Tenho fomi…”. Enquanto se desempenha da nobiliárquica tarefa de manter a segurança e a paz, zelar pelo cumprimento da legalidade, este distinto agente das forças policiais, fardado em conformidade com o regulamento interno, aproveita para pedir uma esmola ao branco.

Tendo ido levar um amigo ao seu lar, entrei num bairro de degredo e miséria. Chegados à sua porta, saio do carro. Os transeuntes reparam imediatamente na minha presença. É tão frequente a presença de um branco por ali como o são as chuvas de Julho. Olho em redor, contemplando uma vez mais o abismo entre a estação de onde parti e aquela a que me trouxe o comboio do sonho. Uma criança de dois anos, descalça, com a fatiota desmazelada e prenhe de nódoas, corre desalmadamente para mim, dirigindo-se a este espécime alvacento. Preparo-me para pegá-la ao colo e mostrar-lhe o meu afecto. Todavia, ela trava a marcha pouco antes de embater contra o meu corpo, fixa-me destemidamente, estende a mão pequena e carnuda, “Patrão, dá mili!”.

O ensaio, já descarrilado, e a teoria geral assim apresentada, tão facciosa e unidireccionada, têm mais pecados do que virtudes. Ficam para outra ocasião.

Quando aterrei neste país, trazia um peito assoberbado de putativa filantropia, vontade de dar tudo, desfazer-me da totalidade dos meus haveres. Libertar-me deste ter que me tornava imundo e indigno de respirar o ar pertencente aos pobres. Aos poucos compreendi os malefícios do dar desordenado e desregrado. A caridadezinha material mais não faz do que alimentar este vírus pútrido e destrutivo, a que se chama dependência, e que nos faz mendigos da consciência dos abonados, os quais, hipocritamente, encontram na esmola a leveza do espírito. Não queremos ver, ou fingimos não saber que a pobreza material é, amiúde, um mero efeito de uma outra lacuna mais profunda e de transmutabilidade duvidosa. Essa, a que assenta na estrutura volitiva de cada um, na sua atitude perante a vida, enfim, é a consequência de um espírito definhado, miserável, assombrado pela opressão passada e actual, por uma cultura de preconceitos e grilhetas, um medonho acomodamento ao mais ou menos e ao deixa andar. Dar a este pobre é, pois, mostrar-lhe o que ele não é por sua culpa e incendiar nele a revolta por isso.

E se vim a borbulhar de intenções doadoras, partirei deixando pouco. Quando regressar, sendo a mala a mesma, terei mais trabalho a fazê-la do que tive a desfazê-la. No final, todos saberemos, já o sabíamos, quem pediu a quem, mas estremeceremos quando percebermos quem recebeu de quem.